Toda restauração parte de um princípio comum a todas: o reconhecimento do valor supremo da solução antiga, considerada eterna e definitiva, trazendo resposta para as inquietações do presente. (João Camilo de Oliveira Torres)
Causou-me enorme espanto e uma impressão absurdamente boa quando vi, pela primeira vez, Lady Gaga cantando ao lado do lendário Tony Bennett – que nessa semana anunciou que, infelizmente, está com Alzheimer – no show Cheek to Cheek Live!, de 2014. Ver aquela megaestrela da música pop, que em 2010 se vestiu de carnes para uma premiação musical e coleciona controvérsias ao estilo Madonna dos anos 1980, cantando – e muito bem! – standards de jazz imortalizados por Bennett, Sinatra, Nat King Cole e outros, numa apresentação impecável; e confessando ao público que, após ter crescido cantando aquele estilo de música e optado, em busca do sucesso, por uma carreira pop, Tony Bennett havia salvo sua vida e libertado um pássaro que estava preso numa gaiola, foi tocante e me fez ter certeza de que Lady Gaga é uma das artistas mais completas da atualidade.
E o que me fez enxergar isso? A sua inquestionável paixão por um dos mais tradicionais estilos musicais americanos e sua visível emoção por estar ao lado de Tony Bennett como quem diz: “eu só existo porque você existe”; e que não existiria a Lady Gaga pop se não fosse a pequenina Stefani Joanne Angelina Germanotta, cantando jazz aos 13 anos de idade.
As histórias de vida dos participantes do The Voice + são o retrato fiel do que é o Brasil e do que são os brasileiros em sua melhor versão: um povo alegre, perseverante, emotivo e com os pés fincados na realidade e nas tradições do país
Isso mostra o valor daquilo que se costuma chamar de tradição, que, segundo o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, trata-se da “herança cultural e da transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra”. A tradição é um dos mais importantes conceitos do conservadorismo, que sustenta o princípio de continuidade, ou seja, o meio de unir as gerações, garantindo que as mudanças não sejam feitas por meio de rupturas, mas de decisões prudentes, judiciosas e duradouras. A tradição é um modo de nos conectar com o passado a fim de nos orientarmos, pois, se chegamos até aqui, foi porque as coisas deram certo e nos permitiram que aqui chegássemos.
João Camilo de Oliveira Torres, um dos maiores expoentes do pensamento conservador brasileiro – sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo –, argumenta, no artigo Ruptura e continuidade, presente no volume O elogio do conservadorismo, que “nas situações saídas da continuidade e permanência, por um simples desdobramento da anterior, quando, afinal, ambas pertencem à mesma unidade cultural, os homens [no sentido geral de seres humanos] se sentem à vontade e compreendem a relação entre o passado e o presente. Há um certo otimismo, não há incompreensões radicais entre as gerações”. Uma sociedade só se desenvolve e perdura – e isso não sou eu que digo, mas a própria história nos prova – quando suas tradições e seus avanços dialogam saudavelmente, quando há um senso de pertencimento da geração atual em relação às gerações anteriores, e que “se a continuidade entre o passado e o presente é mantida naturalmente pela tradição nas sociedade que assistem a um processo constituído por processos de desenvolvimento, nas que sofrem de rupturas, compete ao historiador redescobrir o elo condutor e construir a síntese que harmonizará a cultura dividida contra si mesma”.
No entanto, gostaria de acrescentar, caro leitor, que a síntese de que fala Oliveira Torres também pode ser realizada quando, diante de uma situação de aparente desconexão entre o passado e o presente, o passado simplesmente se impõe, impoluto, imponente e belo, e manifeste naturalmente sua autoridade e/ou proeminência sobre o novo; quando a tradição escancara que somos seus filhos, herdeiros de seus valores, de sua história, de sua perseverança e amor; que não seria possível qualquer tipo de informalidade (ou mesmo rebeldia), se não fosse antes a formalidade; ou qualquer novidade ou contracultura se, antes, a tradição não tivesse lançado os fundamentos da cultura. Ou, ainda, como diz o grande filósofo Eugen Rosenstock-Huessy, em seu A origem da linguagem, a nos lembrar que “ninguém (...) poderia dizer ‘Puxa, que dia legal!’ se alguém já não tivesse cantado ‘Os céus proclamam os dons do Senhor’. Ninguém poderia dizer ‘mamãe’ ou ‘papai’ se alguém já não tivesse reverentemente pronunciado ‘Pai’ e ‘Mãe’”. E foi exatamente isso que me veio à cabeça quando, despretensiosamente – pois não acompanho as edições, digamos, normais –, liguei na Rede Globo há duas semanas para assistir, por pura curiosidade, ao The Voice + – versão brasileira do reality holandês The Voice Senior, para participantes com mais de 60 anos –, simplesmente o melhor programa produzido pela tevê aberta em décadas!
Os participantes simplesmente brilham como estrelas no palco, e nos emocionam de uma maneira muito especial por alguns motivos que gostaria de elencar para o nobre leitor. Primeiro, porque só escolhem músicas boas e consagradas (aliás, mais um princípio conservador, da consagração pelo uso); segundo, porque cantam como se aquela fosse sua última chance, como artistas, de se fazerem conhecidos ou relembrados pelo grande público; terceiro, porque se comportam, verdadeiramente, como servidores – na acepção de Andrei Tarkovski para o artista – que estão sempre tentando pagar pelo dom que receberam como que por um milagre, e dão tudo o que têm com uma paixão cativante; e quarto, porque suas histórias de vida são o retrato fiel do que é o Brasil e do que são os brasileiros em sua melhor versão: um povo alegre, perseverante, emotivo e com os pés fincados na realidade e nas tradições do país. E mesmo aqueles mais, digamos, descolados, não o são de um modo piegas ou forçado.
Tais artistas são o mais puro exemplo do espírito conservador, caracterizado por essa postura ou “estado de espírito” de quem olha para a realidade em perspectiva, e se expressa de modo a comunicar um legado, uma trajetória, uma história de vida com suas vitórias e derrotas, suas alegrias, mas também seu sofrimento. Não há discursos de militância cega e intransigente, não há ufanismos identitários, não há malabarismos retóricos. O que Catarina Neves, 81 anos, transmite com sua voz clássica, tem o mesmo fundamento emocional do que transmite Ceiça Moreno, 74 anos, com seu acordeão e sua alma de forrozeira. O já conhecido Dudu França – célebre por canções como Grilo na Cuca e Eu e Ela –, hoje com 70 anos, cantou Fly me to the Moon, imortalizada por Sinatra, com a mesma categoria e verdade de sempre; assim como Leila Maria, 64 anos, arrebentou com Night and Day, de Cole Porter. Minha alma foi completamente lavada e arrebatada pela apresentação eletrizante de Dona Duda Ribeiro, que, aos 69 anos e ao melhor estilo Elza Soares, cantou Se acaso você chegasse, de Lupicínio Rodrigues. Tudo isso acompanhado por um sentimento de unidade, digamos, civilizacional.
Esses exemplos, assim como absolutamente todos os participantes até agora, nos transportaram para um lugar conhecido por todos – ainda que nunca vivido por muitos: o da tradição. O The Voice + é, fundamentalmente, um grande elogio do conservadorismo, para usar o termo de Oliveira Torres; uma disposição que “não se confunde com o reacionarismo”, tampouco pretende “negar o progresso” ou “abolir o tempo”; é, de fato, a atitude prudencial não daquele que “quer voltar ao passado – mas que deseja chegar vivo e em boas condições ao futuro”. Os participantes do The Voice + chegaram e nos têm provado que é possível também chegarmos, basta que não destruamos os fundamentos que nos trouxeram até aqui.
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