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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Literatura

Aristocracia negra feminina

Toni Morrison é uma das escritoras negras que demonstram uma disposição conservadora em suas opiniões.
Toni Morrison, escritora vencedora do Nobel e falecida em 2019, em foto de 2010. (Foto: Ian Langsdon/EFE/EPA)

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“Mesmo no conflito desordenado que é a minha vida, vi que o mundo é dos fortes, independentemente de uma pigmentaçãozinha maior ou menor. Não, eu não choro pelo mundo! Estou muito ocupada afiando minha faca de ostras.” (Zora Neale Hurston, How It Feels to Be Colored Me)

Uma das grandes características de minha coluna (e de meu trabalho) é demonstrar a disposição conservadora – incompreendida e, muitas vezes, demonizada, sobretudo por nossa classe falante (jornalistas, artistas e intelectuais) – de pessoas cuja vida e ideias nem sempre são associadas a essa tradição. Figuras como os brasileiros Theodoro Sampaio, Carolina Maria de Jesus e o próprio Luiz Gama, ou os americanos Oscar Micheaux, Martin Luther King e Mary McLeod Bethune são alguns dos que, trazidos a esse espaço, ganharam uma análise sob essa perspectiva e, a partir de suas próprias ideias, nos convidam à prudência.

Ter uma visão realista sobre a vida, que não se rende a discursos fáceis e percebe a limitação, a  complexidade e a imperfeição de todos os empreendimentos humanos, é algo comum a toda pessoa adulta e responsável. Não há exagero em dizer que a mentalidade revolucionária tem estreita relação com a rebeldia e a inconsequência juvenis, algo que não cabe aos adultos. Como diz o ditado: “quem não foi comunista até os 20 anos não tem coração; quem é depois dos 30 não tem juízo”. Desse modo, uma visão cética (ou trágica), mas, antes de tudo, generosa a respeito de nossa vida e de nossas relações é sinal de maturidade.

Em suas entrevistas e palestras, Toni Morrison se comunica com clareza e profunda erudição; sem radicalismos, sem respostas fáceis, sem comportamentos afetados

Não que não devamos nos indignar diante das injustiças e, por vezes, não sejamos dominados por uma sensação de revolta quando nos deparamos com o mal sendo praticado. Entretanto, pensar que através de rupturas institucionais e/ou da alteração das estruturas sociais seremos capazes de instaurar um reino de paz e justiça no mundo é uma pretensão de quem ignora completamente as contingências e contradições humanas. Quem vive nessa eterna ânsia de mudar o mundo não percebe que, sob tal visão – como diz Andrei Pleşu em seu ensaio “O terceiro dia do comunismo”, na obra Uma ideia que nos deforma as mentes (sobre a qual já falei nesta Gazeta do Povo) –, “o problema do outro substitui o problema do eu, e o problema da injustiça abstrata substitui o problema do sentido”, e o contato com a realidade se perde.

Os nomes citados acima são exemplos de figuras públicas cuja notoriedade cultural e política, se analisada pelo seu próprio trabalho e não pelo modo como são apropriados e divulgados politicamente, se pautaram pela visão prudencial. Luiz Gama, por exemplo, por mais radical que fosse em seu abolicionismo republicano, rejeitou enfaticamente ser chamado de “promotor de insurreições”, afirmando que “de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício à mísera escravatura e muito menos ao partido republicano”; Carolina Maria de Jesus disse: “o desgosto que tenho é residir em favela”, e criticava o comportamento licencioso de seus vizinhos. E Luther King conclamou: “lutemos com paixão e sem descanso pelos objetivos de justiça e de paz, mas tenhamos certeza de que, nesta luta, as nossas mãos permaneçam limpas”. Tal perspectiva, de evidente maturidade, é incomum (ou inexistente) no modo como essas figuras nos são apresentadas por intelectuais e ativistas; é preciso deixá-las “falar”, por si próprias, para nos certificarmos disso. E recentemente tive mais exemplos disso que muito me surpreenderam – e alegraram.

Assim como as abolicionistas cristãs devotíssimas Sojourner Truth e Harriet Tubman, escritoras negras americanas contemporâneas como Alice Walker (A cor púrpura), Maya Angelou (Eu sei por que o pássaro canta na gaiola) e Toni Morrison (Amada) foram apropriadas e são divulgadas por feministas negras como expoentes de seu pensamento. No entanto, não foi o que vi quando comecei a seguir um perfil no Instagram (o Female Poet Society) dedicado a divulgar o pensamento feminino. O perfil posta muito trechos de entrevistas, conferências, bem como frases de Walker, Angelou e Morrison, dentre outras, que começaram a chamar muito a minha atenção por sua postura não só equilibrada, mas, no melhor sentido do termo, aristocrática diante da vida e de seus problemas (dentre eles, o racismo).

Recentemente, em meu Clube do Livro, lemos Jazz, um romance curto de Toni Morrison, uma das obras mais surpreendentes que li nos últimos anos. Morrison, autora de Amada, best-seller que virou filme protagonizado por Danny Glover e Oprah Winfrey, é uma escritora fenomenal; mas suas ideias não são menos surpreendentes. Comprei algumas de suas obras de ensaios e me deparei com uma escritora devotada e muito consciente de seu papel enquanto artista. “A literatura”, diz ela em “Literatura e vida pública”, da obra A fonte da autoestima, “nos permite – mais do que isso, nos exige – a experiência de sermos pessoas multidimensionais”. E, numa entrevista para o The Salon Interview, ao ser perguntada por que se distanciou do feminismo, ela respondeu:

“Para ser o mais livre possível na minha imaginação, não posso assumir posições fechadas. Tudo o que fiz, no mundo da escrita, foi expandir a articulação em vez de fechá-la, abrir portas e, às vezes, nem mesmo concluir o livro – deixando finais abertos para reinterpretação, revisitação, um pouco de ambiguidade.”

Em suas entrevistas e palestras, Morrison se comunica com clareza e profunda erudição; sem radicalismos, sem respostas fáceis, sem comportamentos afetados. Só a boa e velha sabedoria, que exala por seus poros e nos deixa maravilhados.

Antes de ser feminista, Alice Walker é uma escritora que valoriza sua arte (talvez) mais do que seu ativismo

O mesmo podemos dizer da poetisa e romancista Maya Angelou, que, com uma voz doce e cheia de ternura, nos afaga e educa. Angelou também escreveu, além de seus romances e poesias, artigos, ensaios e aforismos repletos de ensinamentos admiráveis. Em Não trocaria minha jornada por nada, temos textos curtos como “Quando a virtude se torna redundante”, no qual diz:

“É curioso, mas nós chegamos a um lugar, a uma época, na qual a virtude não é mais considerada uma virtude. A menção da virtude é ridicularizada e nem mesmo a palavra é mais estimada. Escritores contemporâneos raramente usam palavras como pureza, temperança, bondade, valor ou até mesmo moderação. Estudantes, com exceção daqueles que estudam Filosofia ou estão em seminários, quase nunca têm de responder perguntas sobre moral e piedade. Nós precisamos examinar o que a ausência dessas qualidades fez com o nosso espírito de comunidade e aprender como resgatá-las desse lugar empoeirado pela falta de uso, retomando seu papel importante em nossas vidas.”

Sim, uma escritora celebrada por feministas que exalta as virtudes cardeais e fala abertamente de sua crença em Deus, e reflete, por exemplo, em outra reflexão, “No Espírito”: “Gostaria de acreditar que as pessoas de alma má foram criadas por outra força e estão sob a égide e orientação de algo que não é o meu Deus. Mas, como acredito que Deus criou todas as coisas, não apenas devo lembrar que o opressor é filho de Deus, como tenho a obrigação de tratá-lo como tal”.

E Alice Walker – a única das três ainda viva –, que já foi criticamente citada por mim como a criadora do termo colorismo, é a escritora que exaltou ninguém menos que Flannery OʼConnor, escritora branca do sul dos EUA, considerada racista por muitos de seus críticos. Já falei sobre isso num artigo recente, mas vale repetir: “Walker é admiradora da obra de Flannery e deixa isso registrado no belíssimo ensaio ‘Além do pavão: a reconstrução de Flannery O’Connor’, publicado no livro Em busca dos jardins de nossas mães”, em que afirma:

“Que ela tenha mantido certa distância (ainda que apenas em seu trabalho posterior, mais maduro) das questões internas de seus personagens negros, me parece uma boa escolha, uma vez que, ao limitar, de modo deliberado, o tratamento dado a essas questões e se ater ao registro de ações e comportamentos observáveis, ela os deixa livres, na imaginação do leitor, para habitar outra paisagem, uma outra vida, além da que ela cria para eles. Essa é uma virtude ausente em muitos escritores ao lidar com representantes de um povo oprimido dentro de uma história, e a insistência em saber de tudo, em ser Deus, tem, na verdade, nos sobrecarregado com mais estereótipos do que jamais daremos conta de nos livrar.”

Ou seja, antes de ser feminista, Walker é uma escritora que valoriza sua arte (talvez) mais do que seu ativismo. Ela ainda foi responsável por recuperar uma pioneira escritora negra completamente ostracizada por ser considerada – pois é, caro leitor! – conservadora: Zora Neale Hurtson, sobre quem pretendo escrever com mais atenção posteriormente. Walker disse, em “Zora Neale Hurston: um sinal de alerta e um relato parcial”, que consta no mesmo livro de ensaios supracitado: “Tomei consciência do quanto eu precisava da obra de Zora Neale Hurston algum tempo antes de saber de sua existência”. Ela descobriu Hurston no fim dos anos 1970, fortuitamente, quando escrevia um conto e precisava de informações sobre a prática de vodu entre comunidades negras rurais na década de 1930. Chegou a Mules and Men, em que Zora trata de folclore afro-americano.

Tenho diante de mim um universo de arte e beleza que, mesmo sem ter me aprofundado muito, quis trazer ao leitor a fim de estimulá-lo a, também, procurar por essas preciosidades

No ensaio seguinte, “Em busca de Zora”, ela conta como encontrou e recuperou o túmulo de Hurston, na Flórida, dando a ela a dignidade na morte que não teve em vida. E diz:

“Há momentos – e procurar pelo túmulo de Zora Hurston foi um deles – em que as reações normais de luto, horror e sentimentos semelhantes não fazem sentido, porque eles não mantêm uma relação real com a profundidade da emoção que se pode sentir. Para mim, foi impossível chorar diante do campo cheio de mato onde Zora está. Em parte, foi assim porque eu a conheci pelos livros, mas, também, porque existe um ponto em que até o luto parece absurdo. E, nesse ponto, a risada emerge para recuperar a sanidade.”

Como eu disse, foi uma grande e grata surpresa descobrir essas autoras e, sobretudo, me deparar com sua visão de mundo. E percebo que tenho diante de mim um universo de arte e beleza que, mesmo sem ter me aprofundado muito, quis trazer ao leitor a fim de estimulá-lo a, também, procurar por essas preciosidades. Certamente escrevei mais sobre elas no futuro – sobre Zora, tão logo quanto possível; mas trazê-las agora é um estímulo para que eu continue me aprofundando em suas obras.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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