“A tentação de Santo Antão”, de Girolamo Savoldo.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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“Quando falo de amor não estou falando de alguma resposta frágil e sentimental. Não estou falando de uma força que seja apenas uma tolice sentimental. Estou falando de uma força que todas as grandes religiões tomaram como o princípio unificador supremo da vida. Amor é, de algum modo, a chave que abre a porta da realidade última.” (Martin Luther King Jr.)

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Que o ano de 2021 foi extremamente complicado para todos é um fato. Creio que não haja uma pessoa que, pelo menos em alguma medida, não tenha sido afetada por tudo o que essa pandemia nos trouxe desde o ano passado. Muitos perderam parentes; outros, empregos; outros tantos, os dois. Muitos adoeceram, uns física, outros emocionalmente, e muitos trabalharam a um nível de esgotamento inacreditável. E tenho para mim que esse ano foi ainda mais desafiador, pois os efeitos econômicos se agravaram, as incertezas (mesmo em meio à vacinação) aumentaram, tivemos uma terceira onda devastadora e o debate público se deteriorou sobremaneira.

Para mim, particularmente, foi um ano muito difícil. A começar por, infelizmente, perder duas pessoas muitíssimo queridas: uma tia, para a Covid, e meu sogro para um câncer. Em termos profissionais, foi de batalhas muito intensas – apesar de, graças a Deus, ter não só mantido os meus empregos, como também aumentado consideravelmente minhas atividades –, pois, imagine, caro leitor: voltamos às aulas presenciais em fevereiro após um ano inteiro de aulas on-line, em 2020, sem amparo tecnológico algum, usando os próprios recursos, quando não, tendo de adquiri-los; um mês depois, voltamos às aulas on-line por algumas semanas até que, definitivamente, voltamos à sala de aula para, no meu caso, ter de encarar duas realidades completamente diferentes – pelo menos em termos de estrutura e organização. Na escola pública tivemos regime de rodízio, com turmas pares e ímpares se revezando em sala de aula; portanto, tinha de dar o mesmo conteúdo duas vezes por turma. Na escola privada tivemos regime híbrido, com parte dos alunos em sala de aula e parte em casa. Então o desafio era lecionar de máscara, falar e tentar ser compreendido tanto pelos que estavam em sala quanto pelos de casa. E sem o recurso da leitura labial parcial, o aumento da voz em meio a ventiladores e conversas paralelas deixaram-me (não só a mim, a todos os professores) rouco e com dores na garganta durante praticamente o ano todo.

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O quadro eleitoral que vai se formando é o pior que poderíamos ter, e nos aponta para um inevitável recrudescimento dos ânimos, como também, provavelmente, para as campanhas eleitorais mais absurdamente sujas da história política brasileira

Entretanto, o ano está chegando ao fim e, com isso, os desafios do próximo, em que teremos não só eleições majoritárias como também Copa do Mundo, já nos colocam em alerta. Primeiro, porque o quadro eleitoral que vai se formando, entre o atual presidente – sobre o qual já manifestei minha desfavorável opinião várias vezes aqui, nesta Gazeta do Povo – e o ex-presidente (e presidiário) Luiz Inácio Lula da Silva, é o pior que poderíamos ter, e nos aponta para um inevitável recrudescimento dos ânimos, como também, provavelmente, para as campanhas eleitorais mais absurdamente sujas da história política brasileira. E estando a esperança da terceira via quase morta – diante da letargia de Sergio Moro, da imprevisibilidade de Ciro Gomes e do pique almofadinha de João Doria –, resta àqueles que, à esquerda ou à direita, não desejam nem a reeleição de um, tampouco a volta do outro, a abnegação – e, para aqueles que creem, a fé na Providência.

Pertencendo eu ao time dos que creem, tenho procurado descansar meu coração na esperança de que nada ocorre sem que Deus o saiba e permita, e procurado fazer minha parte somente até onde sei que meu braço alcança. Sou daqueles que não crê em messianismos nem em paraísos terrenos. E, por esses dias, folheando novamente o mais importante livro de ensaios de C.S. Lewis, Deus no banco dos réus, encontrei uma sequência de textos que se encaixa perfeitamente em nossa condição atual e que pode nos orientar – à esquerda e à direita – para o ano que se aproxima. São os três primeiros da Parte II da obra, denominados, respectivamente: Perigos do arrependimento nacional, Dois caminhos para o “eu” e Reflexões sobre o terceiro mandamento.

Em Perigos do arrependimento nacional fui imediatamente levado a pensar o quanto a esquerda, de maneira geral, vem pressionando o país a um sentimento generalizado de culpa pela eleição de Jair Bolsonaro; como se fosse necessário um processo de expurgo diante do fatídico “eu avisei”  que progressistas estão a repetir desde 2019. Mas Lewis nos adverte: “É com tão pouca frequência que os homens se arrependem de pecados reais, que o arrependimento ocasional de um pecado imaginário poderia parecer quase desejável”. O desejo daqueles que parecem ordenar penitência aos que votaram, no primeiro e/ou segundo turno, em Bolsonaro não pode se dar sem um, digamos, efeito espelho. É tentador olhar com superioridade para quem erra e ver no arrependimento do outro cumprir-se nosso desejo de condenação. “O primeiro encanto fatal do arrependimento nacional” – diz Lewis – “é, portanto, o incentivo que ele nos dá para nos afastarmos da amarga tarefa de arrepender-nos de nossos próprios pecados e, em vez disso, voltarmo-nos ao dever mais agradável de lamentar – mas, primeiro, de criticar – a conduta dos outros”. Ou seja, um processo legítimo de reconhecimento do erro alheio passa pelo reconhecimento de nossos próprios erros. Bolsonaro não é somente fruto da direita, mas também de um sentimento anticorrupção aflorado pelos inequívocos escândalos petistas dos últimos anos.

Em Dois caminhos para o “eu” somos levados a pensar na contradição que pode haver entre as atitudes de amar e odiar a nós mesmos. Primeiro porque devemos, sim, nos amar – caso contrário, como poderíamos seguir o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos (Mt 22,39)? Segundo, porque devemos odiar o nosso ego (João 12,25). Diz Lewis – a citação é longa, mas necessária:

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“Ora, o eu pode ser considerado de duas maneiras. Por um lado, é criatura de Deus, motivo de amor e regozijo; mesmo que no presente, porém, encontre-se em condição detestável, apenas digno de pena e necessitado de cura. Por outro lado, é aquele eu, dentre todos os outros, chamado eu – que, por este motivo, faz uma reivindicação irracional de preferência. Esta reivindicação deve ser não apenas odiada, mas simplesmente eliminada; sem ‘nunca’, conforme disse George MacDonald, ‘poder receber um momento sequer de trégua da morte eterna’. O cristão deve travar uma guerra interminável contra o clamor do ego como ego, embora ame e aprove o eu propriamente dito, salvo seus pecados. O mesmo amor-próprio que ele tem de rejeitar é, para ele, uma amostra de como deveria se sentir com relação a todos os egos; e ele pode esperar que, quando aprender de verdade (o que dificilmente acontecerá nesta vida) a amar o próximo como a si mesmo, poderá ser capaz de amar a si mesmo como a seu próximo – isto é, com caridade em vez de parcialidade. Aquele outro tipo de ódio próprio, ao contrário, odeia o eu propriamente dito. Ele começa aceitando o valor especial do eu pessoal; então, com o orgulho ferido ao descobrir que tal objeto querido é tão decepcionante, procura vingança – primeiro neste mesmo eu, depois em todos os outros. Profundamente egoísta, mas agora com um egoísmo invertido, ele usa o revelador argumento ʻEu não poupo a mim mesmoʼ – com a implicação de que ʻlogo, a fortiori, não preciso poupar os outrosʼ – e torna-se como o centurião em Tácito, toleraverat immitior quia [Mais implacável porque ele (próprio) o havia suportado]. O ascetismo errado atormenta o eu; o ascetismo correto destrói o egoísmo. Devemos morrer diariamente; porém, é melhor amar o eu do que não amar coisa alguma e ter compaixão do eu do que não se compadecer por ninguém.”

Ou seja, a supressão de nosso eu não nos deve levar a sermos implacáveis com os outros, bem como nosso amor próprio não deve ser condescendente para com nossos erros.

Um processo legítimo de reconhecimento do erro alheio passa pelo reconhecimento de nossos próprios erros

E, por último, mas não menos importante – até mais para os cristãos –, está o Reflexões sobre o terceiro mandamento (que, no caso, corresponde à ordem numérica protestante: Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus). Nesse texto Lewis discute a necessidade da criação de um Partido Cristão na Inglaterra de seu tempo; nada mais atual no Brasil que, nos últimos anos, uniu religião e política de uma maneira nunca antes vista. Entre aqueles que dizem que Bolsonaro é um enviado de Deus e os que veem no presidente um aliado contra pautas de esquerda – como a famigerada ideologia de gênero – firmou-se, entre muitos cristãos, um apoio incondicional ao governo, mesmo diante de fatos que jamais nos levariam a apoiá-lo, por exemplo: Bolsonaro é um católico que se deixou batizar sem, de acordo com os preceitos evangélicos, se converter; é um blasfemador e mentiroso contumaz; e demonstra pouquíssima compaixão.

Lewis mostra um impasse no desejo por um partido cristão – ou mesmo pelo desejo de influência direta de cristãos na política partidária. Diz ele:

“Um partido cristão precisaria escolher entre a opção de limitar-se a declarar quais fins são desejáveis e quais meios são lícitos e a opção de ir além e selecionar, dentre os meios lícitos, aqueles que julga viáveis e eficazes e dar-lhes apoio prático. Caso escolha a primeira alternativa, não seria um partido político. Praticamente todos os partidos professam fins que reconhecemos ser desejáveis: segurança, salário mínimo e o melhor equilíbrio possível entre as reivindicações de ordem e liberdade. O que diferencia um partido do outro são os meios que cada um defende. Não discutimos se os cidadãos devem ser felizes, mas qual sistema seria mais suscetível de fazer com que isso acontecesse: um Estado igualitário ou hierárquico, o capitalismo ou o socialismo, o despotismo ou a democracia.”

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Ou seja, um partido cristão deveria escolher entre ser fascista (que eu chamaria de reacionário), conservador ou socialista/comunista. No primeiro caso, diz ele, um cristão fictício chamado “Philarchus, um cristão devoto, está convencido de que o bem-estar temporal só pode advir de uma vida cristã, e que uma vida cristã só pode ser promovida na comunidade por um Estado autoritário que tenha eliminado os últimos vestígios da odiada infecção ʻliberalʼ [no caso, esquerdista]. Ele considera o fascismo não tanto como um mal, mas como algo bom corrompido; julga a democracia como um monstro cuja vitória seria uma derrota para o cristianismo; e é tentado a aceitar auxílio até mesmo fascista, na esperança de que ele e seus amigos atuem como fermento na massa dos fascistas britânicos”. Reconheço nesse tipo de cristão os bolsonaristas, pois muitos enaltecem, por exemplo, o governo Pinochet, dizendo que Bolsonaro deveria fazer o mesmo por aqui. Os pedidos reiterados de AI-5 por seus apoiadores também são uma prova cabal.

A única maneira de um cristão influenciar na política é reivindicando de fora, pressionando os de dentro a fazerem aquilo que é correto

O outro cristão, denominado Stativus, tem “profunda consciência da Queda – e, portanto, convencido de que a criatura humana deve ter apenas o mínimo de poder sobre seus semelhantes – e ávido por defender as ordens divinas de qualquer infração por parte das ordens de César, ele ainda vê na democracia a única esperança de liberdade cristã. Ele é tentado a aceitar ajuda dos defensores do status quo mesmo que as motivações comerciais ou imperiais destes não apresentem sequer uma aparência de teísmo”. Nesse reconheço muitos conservadores não bolsonaristas – dentre eles, me incluo e reconheço essa tentação.

O terceiro, chamado de “Spartacus, também cristão e também sincero, repleto de condenações proféticas e dominicais a fazer com relação às riquezas e certo de que o ‘Jesus histórico’, traído por tanto tempo pelos apóstolos, pelos pais, e pelas igrejas, exige de nós uma revolução esquerdista. E ele também é tentado a aceitar ajuda de incrédulos que professam abertamente ser inimigos de Deus”. Eis o cristão de esquerda. E Lewis arremata:

“Os três tipos representados por esses três cristãos supostamente se uniriam para formar um partido cristão. Então, ora haveria um impasse (e aqui terminaria a história do partido cristão), ora um dos três conseguiria lançar um partido próprio, expulsando do grupo os outros dois com seus respectivos seguidores. O novo partido – provavelmente a minoria dos cristãos, os quais, por sua vez, já são a minoria dos cidadãos – seria pequeno demais para ser efetivo. Na prática, ele teria de associar-se ao partido não cristão mais próximo no que se refere aos meios defendidos por suas crenças: os fascistas, caso fosse Philarchus; os conservadores, caso fosse Stativus; os comunistas, caso fosse Spartacus. Resta-nos perguntar de que maneira a situação resultante seria diferente daquela em que os cristãos se encontram hoje.”

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Ou seja, tal desejo não só é inconciliável como encerra um problema que já enfrentamos na atualidade. Diz Lewis:

“Não é razoável supor que esse novo partido cristão teria o poder de influenciar a organização infiel à qual se associasse. Por que isso haveria de acontecer? Aquilo de que ele se autodenominasse seria o que haveria de representar; não a cristandade, mas parte da cristandade. O princípio que o separa de seus irmãos e o une a aliados políticos não seria teológico. Ele não teria autoridade para falar em nome do cristianismo; não teria mais poder do que a mera habilidade política de seus membros para controlar o comportamento dos aliados incrédulos. No entanto, existiria ali uma novidade real e desastrosa: ele não seria simplesmente uma parte da cristandade, mas uma parte que alega ser o todo. Pelo simples ato de autodenominar-se partido cristão, ele implicitamente acusaria de apostasia e traição todos os cristãos que não se unissem a ele. Ele seria exposto, em um nível exacerbado, à tentação da qual ninguém é poupado pelo diabo em momento algum: a tentação de reivindicar, para nossas opiniões favoritas, o tipo e o grau de certeza e autoridade que pertencem somente à fé.”

E Lewis encerra dizendo que a única maneira de um cristão influenciar na política é reivindicando de fora, pressionando os de dentro a fazerem aquilo que é correto. E diz mais: “Há uma terceira maneira de influenciar a política: tonando-se a maioria. Aquele que converte o próximo realiza o ato político-cristão mais prático de todos”. Essa deveria ser a missão principal de todo cristão, e não aliar-se, mesmo contra o Evangelho de Cristo, a qualquer coisa que carregue uma ideologia que ele considere adequada.

Pois eis o meu desejo para o seu 2022: não use o seu arrependimento para condenar o próximo; ame-se e odeie-se na medida e direção certas; e não coloque uma ideologia política acima da Verdade.

Feliz Ano Novo!

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