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“Pareceria que a conversa do príncipe era a mais simples; no entanto, quanto mais simples ela era, mais absurda ia se tornando nesse momento, e o experiente criado não podia deixar de notar que se algo que fica bastante bem a um homem em conversa com outro homem, já não fica nada bem a um visitante em conversa com um homem como ele. E como os homens são bem mais inteligentes do que os seus senhores costumam pensar a respeito deles, o criado meteu na cabeça que ali havia duas coisas: ou o príncipe era algum devasso e ali comparecera forçosamente a fim de pedir por causa de sua pobreza, ou o príncipe era simplesmente um bobo e sem ambição, porque um príncipe inteligente e ambicioso não estaria sentado numa sala de recepções e conversando com um criado sobre os seus problemas.” (Dostoiévski, O Idiota)
Quando fui apresentado, à época, por minha futura esposa à sua família, vi-me diante de um clã peculiar: uma família totalmente devotada à fé, sem rodeios e sem atenuantes; viviam para e, de certo modo, da fé. Minha sogra era (é) pastora; meu sogro, presbítero (depois foi ungido a pastor); minha futura, minhas cunhadas e meu cunhado, músicos de igreja. Todos encaminhados na fé e no louvor a Deus. Conheci minha digníssima em 2003, quando foi dar aulas de canto na igreja em que me converti (em 2000). Cantou, encantou-me e eu a cantei, se é que o leitor me entende.
A matriarca, dona Lázara, mãe de meu sogro, que morava com eles, foi a mulher mais piedosa que conheci. Saiu do analfabetismo sozinha para poder ler a Bíblia (aliás, a Bíblia foi a sua Caminho Suave), e miraculosamente tornou-se uma excepcional compositora de belíssimos hinos religiosos (as gravações, infelizmente, são raras). Foi ao encontro do Senhor meses após o meu casamento com sua neta, de modo que ainda pode nos abençoar, e nós pudemos tê-la em nosso álbum de fotos. Morreu como desejava: na igreja, cantando, do alto de seus 81 anos muito bem vividos a serviço do Evangelho. Teve um mal súbito e sequer sofreu. Seu velório/enterro foi o acontecimento mais lindo e emocionante que vi em toda a minha vida. Eu nunca tinha visto um velório com tanta música, tanta emoção e tanta alegria. Chorávamos rindo, ríamos chorando, e o nome do Senhor foi exaltado. Vó Lázara, a exemplo do apóstolo Paulo (2 Timóteo 4,7), verdadeiramente combateu o bom combate, acabou a carreira e guardou a fé; e recomendou que, diante de seu esquife, houvesse festa. E houve.
Quando fui apresentado, à época, por minha futura esposa à sua família, vi-me diante de um clã peculiar: uma família totalmente devotada à fé, sem rodeios e sem atenuantes
O legado da irmã Lázara ultrapassou e muito o reduto familiar; são inúmeros os testemunhos a seu respeito, de como aquela senhorinha toda grisalha, com sua boina de crochê, andava sozinha, para lá e para cá, levando a Palavra e o Amor de Deus. Lembro-me de vê-la saindo lá de Santo André (SP) para ir celebrar um culto semanal no quartel dos bombeiros, na Praça Clóvis Beviláqua, no Centro de São Paulo. Pegava ônibus, trem e metrô, sozinha. Jamais murmurava e sempre tinha uma palavra de encorajamento e de esperança. Cuidou de doentes, repreendeu rebeldes e consolou aflitos. Mas seu maior legado mesmo foi seu filho, Elizeu Pereira da Silva, meu querido sogro, que acabou por ir encontrá-la na última sexta-feira, dia 9 de outubro.
Pastor Elizeu era – os literatos me entenderão – aquilo que mais se aproxima, para mim, da personificação do Príncipe Míchkin dostoievskiano, personagem do romance O Idiota, cuja citação em epígrafe nos dá uma pequena noção. A fim de que o leitor não familiarizado com a estupenda obra e seu protagonista – uma mistura de Jesus Cristo com Dom Quixote, segundo o autor – não perca a referência, cito aqui o maior especialista na obra de Dostoiévski, Joseph Frank, que traduz com perfeição em Dostoiévski – Os anos milagrosos não só quem é o Príncipe Míchkin, mas, indiretamente, quem foi Elizeu:
“O halo moral que envolve o Príncipe é comunicado já na primeira cena, quando se acha sentado num vagão de trem a caminho de Petersburgo e encontra o turbulento filho de comerciantes Rogójin e o escroque divertido e cínico Lébedev. O que impressiona Rogójin no Príncipe é a perfeita inconsciência de si mesmo com que responde a suas perguntas insolentes, a total falta de agastamento com os ares de superioridade do interlocutor. O comportamento do Príncipe é marcado por uma total ausência de vaidade ou de egoísmo; simplesmente não parece possuir os sentimentos de respeito próprio dos quais essas atitudes se alimentam. Ainda mais, revela uma capacidade ímpar de aceitar o ponto de vista do seu interlocutor – a tal ponto, na verdade, que compreende inteiramente a opinião que o outro faz a seu respeito. Isso não significa que o Príncipe concorde necessariamente com essas opiniões […]; mas, no seu pensar, essas opiniões se devem à sua aparência e a seu comportamento estranhos; e, assim, perdoa-as de antemão.”
Esse era Elizeu, meu sogro, quase sem tirar nem pôr. Mas confesso que demorei muito para compreender isso; na verdade compreendi bem pouco durante todo o tempo em que convivemos, pois a mim seu comportamento parecia resvalar numa certa falta de responsabilidade para com a família e com os problemas que, vez por outra, chegavam – e, não raro, se avolumavam. Elizeu parecia alheio e negligente, e sua alegria e otimismo resolutos incomodavam aqueles de personalidade, digamos, mais trágica, como eu. À exemplo da descrição de Frank sobre Míchkin, suas opiniões variavam conforme minha sogra – a mulher forte da casa após o falecimento da vó Lázara – os parecia conduzir, pois era capaz de concordar e discordar de algo à medida que dava sua opinião e minha sogra o corrigia. Era engraçado, mas, para mim, um sujeito combativo e afeito a embates argumentativos intermináveis, transparecia uma falta de convicção grave num pai de família. Mas não era; era a Graça. Enquanto todos desesperavam, ele servia e sorria.
O que Elizeu tinha de abnegado e não dado a conflitos também tinha de prestativo. Era, no melhor sentido do termo, pau pra toda obra. Soldador de profissão, músico por vocação, quando não estava cantando e tocando seu violão, sua guitarra ou seu cavaquinho em louvor a Deus, estava fazendo algo por alguém. Desde lavar vasilha (lavar louça, na expressão pitoresca que sempre usava) coisa que adorava fazer, até consertado tudo quanto é coisa que estivesse quebrada. Era um mestre da gambiarra que, sob os protestos de minha sogra pelos remendos e, digamos, adaptações, dava um jeitinho em tudo que podia. Músico de ouvido, ficava todo feliz em, com sua guitarra, acompanhar as filhas cantando, e o improviso muitas vezes também se dava nos acordes, ao que elas reclamavam e riam ao mesmo tempo, pois a cara que ele fazia era muito engraçada.
Quando o casal se mudou para Nepomuceno (MG), tornou-se conhecido não só pelo bom perfume de Cristo que exalavam, mas porque Elizeu tornou-se o ciclista inveterado, pedalando para cima e para baixo na pequena cidade, e também uma espécie de Kant das Gerais – pelo menos nos costumes metódicos: todos os dias, às 6 da manhã, estava na padaria para comprar pão. Aliás, quando íamos para lá, seu prazer era levantar cedinho, antes de todos, ir à padaria, comprar pão, fazer o café e deixar tudo pronto para quando acordássemos. Como quando vamos para lá gosto de acordar bem cedo, vez por outra o encontrava preparando tudo; ele, me vendo, dizia: “bom dia, Paulinho, o café tá pronto”. Pausa para a saudade, que apertou...
O que Elizeu tinha de abnegado e não dado a conflitos também tinha de prestativo
Sempre magro e elegante, passava a navalha na cabeça com frequência tal que nunca vi sequer um fio de seus cabelos; deixava sua marca registrada, sua careca, sempre aveludada e brilhante. Caprichava no visual e ficava todo feliz quando eu levava roupas minhas de presente para ele. Amava vestir-se para ir à igreja, com a consciência de que, para Deus, devemos oferecer o melhor. Também era bom de garfo, comia com gosto (e não engordava, diga-se, por isso roupas minhas que não mais me serviam ficavam perfeitas nele) e amava amendoim torrado com casca – coisa que só encontrava aqui perto de casa; por isso sempre pedia que levássemos quando íamos para lá, ou, sempre que chegava aqui, a primeira coisa que fazia era ir comprá-los. Adorava uma bagunça e era um sujeito de sorriso fácil e cativante. Quase nos matou de susto quando, ao ousar fazer um bate-e-volta de Minas para cá, capotou com o carro na Fernão Dias, de madrugada, sendo, por um verdadeiro milagre, socorrido por um sobrinho que, naquele exato momento, passava pela mesma rodovia voltando para sua casa em Atibaia. Não foi sorte, foi Deus.
Mas a maior característica do meu querido sogro era a bondade. E sua morte fez-me lembrar, por um antiexemplo, do horripilante conto de Flannery OʼConnor, Um homem bom é difícil de encontrar, no qual uma família (pai, mãe, um casal de filhos e a avó), viajando em férias, sofre um acidente de carro e é encontrada por um fugitivo da prisão de nome Desajustado (Misfit), cuja maldade demoníaca o precedia. Seu sadismo frio e niilista confronta a fé tola da avó, que tenta convencê-lo de que é um homem bom: “o senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo”. E, a cada investida desse homem e seus dois companheiros contra essa família – não darei detalhes para que o caríssimo leitor procure por essa pequena obra-prima –, a velha avó insistia: “O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto [...]. Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo? [...] Costuma rezar?”. A resposta é, no mínimo, curiosa: “Por uns tempos, fui cantor gospel [...]. Já fiz um pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e lá fora, já me casei duas vezes, já fui agente funerário, já fui ferroviário e já lavrei a mãe terra, estive em um tornado, certa vez vi um homem queimado vivo... [...] Vi até uma mulher ser chicoteada [...]. Não me lembro de ter sido um mau menino [...], mas o fato é que lá pelas tantas fiz alguma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária”.
Aos 74 anos, cheio de saúde, aprouve a Deus chamar o seu servo para engrossar o coro celeste. Elizeu está em Paz agora. A nós, que ficamos, cabe a dura tarefa de transformarmos a brutal saudade em doce lembrança
Por fim, diante da insistência da avó, que clamava a Jesus desesperada pela catástrofe familiar que se desenhava, o Desajustado diz: “Jesus foi o único a ressuscitar os mortos [...]; e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. Mas, se não fazia, então o que nos cabe é desfrutar dos poucos minutos que nos restam da melhor maneira possível – matando alguém ou queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. Sem maldade não há prazer”. O horror.
O desfecho do conto deixo para que o curioso leitor descubra por si, mas volto ao meu amado e saudoso sogro. Elizeu era o oposto do Desajustado, porque era, de fato, um homem bom (um Príncipe Míchkin). Era a antítese de alguém que se recusa a orar, pois orava o tempo todo, sem cessar; era o completo oposto de alguém que, sendo cantor gospel, faz algo de errado e vai parar na cadeia, pois tinha a vida no altar de Deus. E, se um dia duvidou da ressurreição, logo se arrependeu e nunca deixou que esse titubeio chegasse à sua família, cuja fé fortaleceu com seu exemplo de integridade que a força de seu nome bíblico carrega.
O câncer que, após descoberto, em menos de um mês ceifou-lhe a vida terrena nos deixou em choque por alguns momentos – foi tudo muito rápido. Mas logo lembramos que somos cristãos, e que, para nós, o viver é em Cristo e o morrer é lucro. A doença foi, na verdade, um passaporte rápido e sem sofrimento para o Céu. Aos 74 anos, cheio de saúde, aprouve a Deus chamar o seu servo para engrossar o coro celeste. Elizeu está em Paz agora, e seu velório/enterro foi tão festivo quanto o da vó. A nós, que ficamos, cabe a dura tarefa de transformarmos a brutal saudade em doce lembrança. Que o Espírito Santo nos ajude.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos