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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Tragédia e entretenimento

Um país (espiritualmente) devastado

A cantora Madonna realizou show na Praia de Copacabana enquanto gaúchos sofrem com enchentes históricas. (Foto: Reprodução/Rede Globo)

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“Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom fossem feitos os prodígios que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido, com saco e com cinza. Por isso eu vos digo que haverá menos rigor para Tiro e Sidom, no dia do juízo, do que para vós. E tu, Cafarnaum, que te ergues até ao céu, serás abatida até ao inferno; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje. Eu vos digo, porém, que haverá menos rigor para os de Sodoma, no dia do juízo, do que para ti.” (Mateus 11,21-24)

Quem assistiu à primeira temporada da série The Last of Us, que conta a saga de sobreviventes em meio a um apocalipse zumbi, talvez não tenha conseguido, como eu, deixar de associá-la às cenas de horror, banditismo e violência que têm ocorrido durante a devastação que atingiu o Rio Grande do Sul nos últimos dias (uso essa referência porque não vi outras séries do gênero). O resgate de pessoas ilhadas nos telhados de bairros inteiros submersos; a tentativa desesperada por encontrar familiares desaparecidos; a dificuldade logística para levar alimento e água àqueles mais afetados e ainda impossibilitados de sair de suas casas; tudo isso tem sido feito em meio a assaltos, troca de tiros e saques com cenas de guerra na escuridão da noite.

Do outro lado temos as redes sociais, mais uma vez, em confronto com a mídia tradicional (e o governo) nas denúncias em relação à burocracia, à ineficiência e à falta de planejamento do Estado – em contraposição ao discurso nefasto das famigeradas fake news, que quer nos forçar a acreditar no discurso do Estado e de seus apaniguados. Dezenas de vídeos circulam com cenas de fiscalizações, multas e toda sorte de empecilhos para que a ajuda chegue às centenas de milhares de pessoas em situação de desolação absoluta, simplesmente porque o poder público não tem a mínima capacidade de organização. Até agora, por exemplo, não temos um plano nacional robusto para a condução do problema; o envio de recursos é pífio, as Forças Armadas seguem atuando em meio a controvérsias, mas o governo está se apressando para punir quem está supostamente desinformando.

O entretenimento tem sido, sempre e sempre, a maneira de disfarçarmos nossa miséria

A verdade é que nosso país não tem a mínima condição de lidar com demandas tão urgentes como essa. Nossa classe política existe para servir-se da população e não para servi-la, e o Estado brasileiro não está habituado a ter de solucionar problemas estruturais. A eterna obra de transposição do Rio São Francisco talvez seja o exemplo mais paradigmático. Aqui, em São Paulo,  as obras do Rodoanel – um anel rodoviário de míseros 176 quilômetros que circundará a região da Grande São Paulo, desafogando o trânsito de imensos caminhões dentro do centro urbano da cidade – não terminam nunca. O quimérico trem que levaria a população ao Aeroporto Internacional de Guarulhos (inaugurado em 1985!), quando foi concluído, mais de 30 anos depois, em 2018, não chega até os terminais: é preciso pegar um ônibus para terminar o trajeto. Sem contar as catástrofes que se repetem, ano a ano, nos mesmos lugares, por causa de questões climáticas.

O brasileiro assiste a tudo isso não de forma estoica – pois isso demandaria uma firmeza moral resoluta –, mas de maneira absolutamente niilista a carnavalesca. O entretenimento tem sido, sempre e sempre, a maneira de disfarçarmos nossa miséria. Se antes o país começava a dar ares de alguma funcionalidade somente após o carnaval, agora temos o Big Brother, que termina somente em maio e enreda em sua audiência milhões e milhões de pessoas direta e indiretamente. Dessa vez, fomos além: no mesmo fim de semana em que o Rio Grande do Sul submergia de modo aterrador, uma decadente e ultrapassada Madonna animava uma multidão de saudosistas na Praia de Copacabana.

As redes sociais nos condenaram ao hiperestímulo digital, tornando a vida de muitos completamente comandada pela infodemia; os tão costumeiros boatos, que sempre existiram e sempre foram assimilados como tal na sociedade, ganharam tamanha relevância que, misturados às disputas políticas recentes, têm suscitado o esforço das esquerdas para censurar as redes sociais.

Pessoas estão adoecendo – e muito! – e a educação está sendo profundamente prejudicada pela falta de atenção provocada por aplicativos de vídeos curtos; a dinâmica do engajamento a qualquer custo e a necessidade que influenciadores têm de produzir quase ininterruptamente só têm levado à ansiedade e à depressão. Como compreender tudo isso que está acontecendo? É possível corrigir a rota de nossa desordem?

As redes sociais nos condenaram ao hiperestímulo digital, tornando a vida de muitos completamente comandada pela infodemia

O mundo contemporâneo, tomado pela volatilidade e pela falta de consensos psíquicos, intelectuais, emocionais ou morais – pela fala de absolutos, por assim dizer –, vai rumando, acelerado pelo imediatismo desenraizado das redes sociais, em direção a um tipo de caos inconciliável. O problema entre Heráclito e Parmênides, entre absoluto e relativo, que Platão buscou resolver de modo genial com sua Teoria das Ideias e do mundo suprassensível, perdeu completamente a importância e nos lançou num império de incertezas que fragiliza e privilegia oportunistas. Os absolutos eram referenciais que nos norteavam, como diz Platão no Fédon:

“E se, para justificar a beleza de alguma coisa, alguém me falar da sua cor brilhante, ou da forma, ou do que quer que seja, deixo tudo o mais de lado, que só contribui para atrapalhar-me, e me atenho única e simplesmente, talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade, ao meu ponto de vista, a saber, que nada mais a deixa bela senão tão só a presença ou comunicação daquela beleza em si, qualquer que seja o meio ou caminho de se lhe acrescentar, e tudo o mais não faço grande cabedal; o que digo é que é só pela beleza em si que as coisas belas são belas. Na minha opinião, essa é a maneira mais certa de responder, tanto a mim mesmo como aos outros. Firmando-me­ nessa posição, tenho certeza de não vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idênticas circunstâncias poderá responder com segurança que é pela beleza que as coisas belas são belas.” (100 d-e, grifo meu)

Perdoe o leitor se filosofei, mas penso, sinceramente, que todo o nosso problema começa da percepção elementar dos absolutos. Sem isso, todas as devastações físicas serão tão somente a materialização de nossa devastação espiritual.

P.S.: envio o meu carinho e a minha solidariedade aos nossos irmãos do Rio Grande do Sul.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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