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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Vida em sociedade

Uma filosofia do trânsito

Trânsito
Dirigir exige atenção, mas também a consciência de que ninguém está sozinho na rua e todos querem chegar a seu destino. (Foto: Albari Rosa / Foto Digital/Gazeta do Povo)

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“Aja externamente de tal modo que o uso livre de seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal.” (Immanuel Kant, Metafísica dos Costumes)

Considero-me um motorista bastante experiente, pois dirijo há mais de 30 anos. Quem me ensinou, ainda na adolescência, foi meu irmão mais velho, que, ao sairmos com o carro de minha mãe (se não me engano, o saudoso Passat bege) para fazermos algo, sempre me deixava conduzir um pouquinho, no entorno de casa, e ia me explicando como controlar a direção, o funcionamento dos pedais, a atenção para com os espelhos retrovisores, o câmbio e as marchas; eu tinha uns 13 anos. Aos 18, quando fui tirar a minha habilitação, eu já era bom o suficiente para passar no teste sem grandes dificuldades.

Em meu primeiro emprego formal, como técnico em eletrônica numa indústria de tecnologia, fabricávamos equipamentos para autoatendimento bancário (URAs), que eram comercializados para o Brasil todo. Quando o destino das máquinas era na capital, era de praxe nós mesmos entregarmos. Ou seja, rodei muito em São Paulo com uma Fiorino branca, de bauzinho, para fazer tais entregas. Em outro momento, trabalhei no famoso Bradesco da Cidade de Deus, em Osasco, município vizinho da capital; foi a época em que comprei o meu primeiro carro, a fim de não mais ter de passar pela saga ônibus-metrô-metrô-trem-ônibus, na ida e na volta, todos os dias. A partir de então, dada a baixa efetividade do transporte público, sempre preferi trabalhar de carro, de modo que acumulo décadas de experiência praticamente diária ao volante, lidando com trânsito intenso e médios trajetos.

Toda essa descrição autobiográfica serviu para dizer ao leitor que, de fato, sou um motorista experiente, mas não só. Ao longo de minha vida dirigindo e refletindo sobre o ato de dirigir, fui chegando à conclusão de que dirigir é uma das atividades mais complexas e (potencialmente) civilizatórias que existem (alguém já deve ter escrito sobre isso, mas OK). É uma atividade individual e coletiva ao mesmo tempo, que exige uma série de ações coordenadas: além da visão frontal, há três imprescindíveis espelhos retrovisores, três pedais (para carros automáticos, dois), um câmbio com cinco marchas (carros automáticos aliviam isso também), freio de mão, acionadores das setas, dos faróis e do limpador de para-brisa. Dirigir exige aguçada atenção, conhecimento das leis e códigos de trânsito, reflexo, raciocínio rápido e uma noção muito precisa de tempo e espaço.

Dirigir é, sobretudo, um exercício de alteridade, de noção do outro. Exige a consciência plena de que não estamos sozinhos no trânsito

Agora, uma das conclusões mais recentes a que cheguei, pois, após dez anos trabalhando perto de casa, passei a percorrer quase 70 quilômetros praticamente todos os dias, é que dirigir é, sobretudo, um exercício de alteridade, de noção do outro. O que quero dizer com isso? Que a atividade de dirigir exige a consciência plena de que não estamos sozinhos no trânsito; que, para atingir o nosso objetivo – ou seja, o nosso destino –, precisamos compartilhar o trajeto com muitas outras pessoas dentro de seus veículos e, também, com pedestres; e que isso exige de nós uma capacidade de respeitarmos e mantermos o fluxo.

Cada pessoa dirige de um jeito. Uns são mais, outros menos experientes; muitos têm pressa para seus compromissos, outros querem andar devagar; outros, ainda, estando fora da vista dos radares – uma das mais importantes e mais canalhas fontes de renda de nossos governos municipais –, não se veem obrigados a trafegar no limite de velocidade (muitas vezes propositalmente lento para certas vias) e querem exercer sua liberdade por sua conta e risco; e muitos estão praticamente aprendendo a dirigir. Fora um tipo peculiar de condutor que surgiu nos últimos tempos: o motorista de aplicativo, que, sendo inexperiente no trânsito e no conhecimento da cidade (pois, geralmente, é oriundo de outras profissões), dirige guiando-se pelo aplicativo de GPS e tem grande parte de sua atenção roubada pela tela do smartphone.

Se você, caro leitor-motorista, nunca parou para pensar nisso, pois pense. Veja a complexidade que é tirar um carro da garagem para ir a qualquer lugar. A quantidade de variáveis que precisam ser combinadas para que não só o seu objetivo seja atingido, mas que o objetivo dos outros não seja obstruído por você. E nisso percebo que grande parte do trânsito intenso que enfrentamos vem não só do excesso de veículos, mas de motoristas que não têm consciência disso. Dou-lhe um exemplo simples, mas paradigmático: trafego, aqui em São Paulo, com frequência, pelas chamadas Marginais. A Marginal Tietê tem três vias – local, central e expressa –, injustificadamente separadas por muretas, totalizando, se eu não estiver enganado, dez faixas. A Marginal Pinheiros tem, na maior parte de sua extensão, seis faixas. Os limites, na Tietê, variam conforme a via (de 60 a 90 km/h). Na Pinheiros, vale o máximo, 90 km/h.

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Tais números de pistas e divisões pressupõem que, da direita para a esquerda, o tráfego vá da mais lenta para a mais rápida, ou seja, a pista mais à esquerda deve ser utilizada, tipicamente, por quem deseja andar no limite (ou acima, por que não?) de velocidade. Daí a pergunta: que leva um motorista a, numa situação de trânsito normal, trafegar na pista expressa, mais à esquerda, numa velocidade menor do que a máxima permitida, ou mesmo relutar em dar passagem a outro motorista que deseje, vá lá, correr? Só tenho duas respostas para tal pergunta: inexperiência ou provocação. Em relação à inexperiência, o fato de existirem nove (na Tietê) ou cinco (na Pinheiros) outras faixas nas quais o novato possa trafegar inexperientemente torna a coisa pouco justificável. Em relação à provocação, bem, nem sei o que dizer, só que tal condutor provavelmente deseja extravasar frustrações em outras pessoas, o que é absolutamente reprovável (incivilizado, por assim dizer).

Há um terceiro elemento, que não tem a ver com inexperiência ou provocação, mas justamente com a falta de alteridade – que eu chamaria de falta de educação ou cidadania. A pessoa sai da casa com o carro absolutamente sem levar em consideração que outros estão fazendo a mesma coisa e que será necessário compartilhar as vias, e que cada um é responsável por fazer com o trânsito flua da melhor maneira possível, compreendendo, respeitando, cedendo, tendo paciência, sendo solidário e proativo. Numa expressão, é absolutamente necessário andar e deixar andar.

Os anos de experiência deveriam nos levar ao cultivo da inteligência e à sabedoria, na vida e no trânsito, tornando o ato de dirigir uma atividade civilizatória e carregada de um sentido profundo de comunidade. Como diz o estoico Epicteto, numa de suas máximas: “É através da clareza de pensamento que somos capazes de direcionar corretamente nossa vontade, manter-nos fiéis aos nossos verdadeiros propósitos, descobrir qual é o nosso relacionamento com os outros e os deveres inerentes a esses relacionamentos”. Dirigir é não só chegar ao seu destino, mas conduzir em função de permitir e facilitar que os outros também cheguem sãos, salvos e, tanto quanto possível, sem percalços, aos seus. Dirigir é, ao fim e ao cabo, um dos mais belos exercícios de cidadania. Busquemos o equilíbrio e a sabedoria no trânsito, para fazermos do trânsito o nosso modelo de sociedade. Ah! E pare de atrapalhar os outros.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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