“A liberdade é ação na ordem natural e consentimento na sobrenatural. Em face do mundo, nós temos a escolha entre agir e não agir; em face de Deus, nós só temos a escolha entre fazer ou não fazer aquilo que Ele quer”. (Gustave Thibon)
Em meu quarto artigo sobre educação, ainda tratando do que Eric Voegelin julga necessário para recuperarmos a realidade – “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade” – gostaria de falar sobre o fundamento da experiência humana. No último texto, tratei da necessidade de recuperarmos o fundamento da existência, que é exatamente a consciência de que não somos causa de nós mesmos. Tal constatação retoma a importância de, na educação, não negligenciarmos a metafísica como elemento constituinte da realidade – inclusive da realidade política –, mas tratá-la como um modo legítimo de dar sentido à existência. Negar a metafísica (consequentemente, a existência de Deus) pode até ser um caminho para a discussão a respeito da realidade humana, mas não deve ser o único.
Nesse sentido, talvez nenhum filósofo tenha sido mais influente nesse processo de isolamento do sagrado do que o existencialista francês Jean-Paul Sartre, cujo engajamento como intelectual público foi surpreendentemente além da qualidade de sua filosofia. Sua relação apaixonada com o marxismo e seu incessante entusiasmo com movimentos revolucionários fizeram de Sartre uma contradição ambulante, elogiando ditadores sanguinários – como Pol Pot, Fidel Castro e Mao –, bem como apoiando passeatas e greves em nome da “liberdade”. No mais, Sartre era um típico revolucionário de gabinete, escrevendo vertiginosamente no Café de Flore, seu habitat natural em Paris, sob efeito de café e drogas. É Paul Johnson quem nos relata, em seu iconoclasta Os Intelectuais (Imago): “A biógrafa dele, Anne Cohen-Solal […] calcula que seu consumo diário de estimulantes nessa época [anos 1950] incluía dois maços de cigarro, vários cachimbos de fumo negro, um litro de álcool (principalmente vinho, vodca, whisky e cerveja), 200 miligramas de anfetaminas, 15 gramas de aspirina, vários gramas de barbitúricos, mais café e chá”. Isso lhe dava fôlego para escrever, sem parar, muitas páginas por dia.
Sartre formulou seu existencialismo ateísta, detalhadamente, em sua obra mais substancial, O Ser e o Nada (publicado em 1943), e, no ano seguinte, evidenciou os aspectos práticos de sua filosofia na claustrofóbica peça Entre Quatro Paredes. Mas foi em sua conferência O existencialismo é um humanismo, proferida em 1945 na Salle des Centraux, que Sartre, de fato, popularizou suas ideias. A premissa fundamental do existencialismo sartreano foi tirada exatamente da crítica que Dostoiévski faz do ateísmo militante em Os Irmãos Karamázov. Diz Sartre:
“Dostoievski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e por consequência o homem está desamparado, pois não encontra nele, nem fora dele, nenhuma possibilidade a que se agarrar. Não encontra desculpas, para começar. Se, de fato, a existência precede a essência, não se poderá jamais explicar nada por referência a uma natureza humana dada e imobilizada; dito de outro modo, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou ordens que legitimarão nossa conduta. Assim, no reino luminoso dos valores, não temos justificativas ou desculpas nem por trás de nós, nem diante de nós. Estamos sós, sem desculpas. Eu exprimiria isso dizendo que o homem está condenado a ser livre”.
Apesar da não existência de Deus ser algo desconfortável – “pois com ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores em um céu inteligível” –, Sartre julga que o ser humano deve assumir sua liberdade, subjetiva e irrestrita, e ser responsável por suas ações, construindo, assim, sua essência pós-existência. Isso significa que “o homem é não apenas tal como ele se concebe, mas como ele se quer, e como ele se concebe depois da existência, como ele se quer depois desse impulso para a existência, o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. Ou seja, a experiência subjetiva – “antes de vivê-la, a vida, em si mesma, não é nada” – é que constitui o sujeito. E toda busca por valores objetivos, Sartre chama de má-fé.
Diante da ausência total de padrões objetivos, a pergunta que não cala é: como viver em sociedade, se não há qualquer limite para a liberdade – minha ou de outrem? É nessa hora que Sartre começa sua trapaça intelectual. Ele evoca um engajamento que submete minha liberdade à de todos: “Quando nós dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens”. Ou seja, sem qualquer moral objetiva, sem um fundamento onde residam as referências concretas, em plena “abolição do homem”, como diz C. S. Lewis, Sartre propõe que as subjetividades devem se submeter. Eis o que o grande filósofo da modernidade nos oferece: uma quimera. No mundo do pós-guerra, eivado de desilusão e desesperança, surge uma afirmação absolutamente sedutora, principalmente para os jovens: “não há sinais no mundo”. E Sartre, curiosamente, chama isso de otimismo, querendo que nos submetamos uns aos outros livremente. Só é preciso combinar com os russos.
Agora, impressiona, caro leitor, a quantidade inumerável de artistas e intelectuais que foram diretamente influenciados por Sartre, inundando a segunda metade do século 20 de um ceticismo doentio e de um hedonismo pernicioso, tornando a experiência humana uma penosa trilha em direção ao Nada. O resultado do existencialismo sartreano não foi o mundo de autonomia e liberdade engajada, mas um mundo oco, onde a satisfação de todos os desejos, a absolutização do prazer e o apelo irrestrito ao individualismo são as únicas coisas que importam.
Até Paulo Freire, o ideólogo marxista que recebeu o título de Patrono da Educação Brasileira e é amado por quase todos os que militam na educação, cita textualmente Sartre em seu panfleto mais conhecido, a Pedagogia do Oprimido, deixando evidente (ou não) a influência do filósofo de olhos peculiares em sua teoria da educação – ou melhor, doutrinação:
“Na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona. Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: ‘“consciência e mundo se dão ao mesmo tempo’”.
Compreendeu, amigo leitor? Nem eu. Mas os pedagogos são magicamente atraídos para essa sandice como se fossem palavras vindas diretamente do Sinai.
A verdade é que o fundamento da experiência humana não pode estar baseado num subjetivismo arbitrátrio, pois o Eu, nas palavras do filósofo Martin Buber, “se realiza na relação com o TU” (Eu e Tu, Centauro Editora). Trata-se de uma relação, por assim dizer, metafísica; nossa experiência se torna significativa nas relações, e é diante do Outro que exercemos a nossa verdadeira liberdade. Não porque tal interação seja arbitrária, como diz Sartre, mas porque é nosso destino:
“Destino e liberdade juraram fidelidade mútua. Somente o homem que atualiza a liberdade encontra o destino. Quando eu descubro a ação que me requer, é aí, nesse movimento de minha liberdade que se me revela o mistério. Mas o mistério se revela a mim não só quando não posso realizar esta ação como eu pretendia, mas também até na própria resistência. Aquele que se esquece de toda causalidade e toma uma decisão do fundo de seu ser, àquele que se despoja dos bens e da vestimenta para se apresentar despido diante da Face, a este homem livre, o destino aparece como réplica de sua liberdade. Ele não é o seu limite, mas o complemento; liberdade e destino unem-se mutuamente para dar sentido; e neste sentido o destino, até há pouco olhar severo suaviza-se como se fosse a própria graça […] O homem livre é aquele cujo querer é isento de arbitrário. Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no vínculo real que une a dualidade real do Eu e do Tu crê no destino e também que ela tem necessidade dele”.
Buber redimensiona a experiência humana para o nível das relações; isolar-se, numa subjetividade absoluta, significa considerar as pessoas como coisas (que ele chama de Isso). O engajamento que Sartre propõe só é possível se o fundamento da experiência não for o próprio homem, mas seu destino; caso contrário, o próprio Deus, que não deixa de existir simplesmente porque o negamos, se torna um Isso. Por outro lado, diz Buber: “A relação com o ser humano é a verdadeira imagem da relação com Deus”. O respeito, a alteridade, o “amar o próximo como a mim mesmo” são, após o amor a Deus, o maior bem do ser humano.
Transportemos esses princípios para a educação e vejamos as relações se restabelecerem, o caos dar lugar à ordem, e o ensino tornar-se uma arma poderosa de transformação individual e social. Não é no vazio arbitrário que a experiência humana pretensamente se organiza, como sonhava irresponsavelmente Jean-Paul Sartre – muito menos numa existência prometeica, de revolta contra Deus –, mas “para quem se apresenta diante da Face, o mundo só se torna realmente presente, à luz da eternidade, na plenitude da presença; ele pode então, de um só impulso, proferir o Tu a todos, ao ser de todos os seres”.
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