“A lei de Cristo, afirmam, é incômoda e abstrata, e pesada demais para as pessoas fracas suportarem – e, em vez da Liberdade e da Ilustração, eles lhes oferecem a lei das cadeias e da escravização pelo pão”. (Fiódor Dostoiévski)
Em meu primeiro artigo para esta coluna, afirmei que “para todo aquele cuja imaginação tenha se formado por um passado escravista que, indiretamente, o persegue por sua cor, a Liberdade é um direito radical, inegociável”; ou seja, desde que o racismo voltou a fazer parte de minhas preocupações – sempre gosto de salientar que estava devidamente apaziguado com esse problema até que os próprios descaminhos do movimento negro me chamaram a atenção –, propus a mim mesmo que a liberdade seria o meu lema, e, de certo modo, todos os meus artigos têm girado em torno disso. A liberdade é o grande dilema do ser humano, sua glória e sua danação, sua bênção e sua maldição.
Em termos políticos – não partidários ou eleitorais, mas da vida política –, a liberdade é, segundo Aristóteles na Política, uma busca pelo “melhor fim”, pela virtude cívica. As virtudes individuais devem convergir para a virtude da cidade; e a virtude própria dos governantes deve ser a prudência. Em termos individuais, a liberdade deve ser a garantia total do exercício de nossa consciência. Numa democracia, que é o nosso caso, a liberdade individual é garantida pela famigerada Constituição de 1988.
O fato é que muitas vezes a liberdade de uns leva ao cerceamento da liberdade de outros; e as escolhas de uns interferem nas escolhas de outros; às vezes sem querer, às vezes arbitrária e maldosamente. Daí a necessidade de, como disse Aristóteles, buscarmos a virtude cívica, o bem comum. Pensar a liberdade é pensar seu ônus e suas consequências. Tal dilema é insolúvel e necessita de maturidade política para ser compreendido equacionado, tanto em termos de nosso processo civilizatório – no qual passamos de um mundo de conquistas e guerras territoriais para um presente, na medida do possível, marcado pela diplomacia –, quanto nos desdobramentos atuais que ainda podem ser percebidos.
Mas há, ainda, outra dimensão da liberdade, e é dela que quero tratar neste artigo.
Platão diz, n’A República, que liberdade é destino – da alma, inclusive. Que deve o homem saber “discernir entre a boa e a má norma de vida, e de, em quaisquer circunstâncias, escolher a melhor […] Desse modo, comparando entre si todos esses elementos e tendo sempre em vista a natureza da alma, ficará em condições de discernir entre a vida boa e a má vida, dando a denominação de má à que contribui para deixar injusta a alma, e de boa, pelo contrário, à que deixa justa, sem a nada mais atender” (318 a-e). Ou seja, é a consciência individual – nesse caso, embalada pela filosofia, pelo amor à sabedoria – que provê um destino bom ou ruim à alma humana. E não é à toa, portanto, que a liberdade é um tema que arrepia os filósofos desde sempre, pois encerra um dilema moral e espiritual. Você pode e é livre para fazer o que quiser, mas sua liberdade está intimamente atrelada a todas as consequências resultantes de suas escolhas.
No Ocidente, forjado pelo Cristianismo, a liberdade tem uma trajetória e um Rosto, que segue, arquetipicamente, desde a libertação do povo de Israel da escravidão egípcia – como procurei demonstrar no artigo já citado – até a culminância evangélica, onde todo o dilema se resume na afirmação categórica de Jesus registrada no Evangelho de João: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (8,36).
E foi, provavelmente, o russo Fiódor M. Dostoiévski, um dos maiores escritores de todos os tempos, quem melhor compreendeu o custo dessa liberdade e seus desdobramentos na modernidade. Em seu último e monumental romance, Os Irmãos Karamázov, há um conto, famosíssimo por si só, que retrata toda a profundidade e todo o drama humano diante da radicalidade da liberdade oferecida pelo Cristianismo. Está no Livro V, Pró e Contra, capítulo V. Ivan Karamázov é o filho do meio de Fiódor Pávlovich Karamázov – os outros são Dmitri (Mítia) e Alieksiêi (Aliócha) –, um jovem de 24 anos, representante do racionalismo ateu radical que se alastrou pela modernidade a partir do Iluminismo. Numa conversa com Aliócha, um noviço quase ingênuo, ele diz que escreveu um “poema” e deseja ler para o irmão; chama-se “O Grande Inquisidor”. Nesse conto, que se passa no século 16, Cristo volta à Terra, sem aviso, não para realizar a parusia, mas só para, digamos, fazer uma visita. Diz Ivan: “Em meu poema Ele aparece; é verdade que ele nem chega a falar, apenas aparece e sai”. No entanto, é reconhecido pelas pessoas, que passam a se aglomerar em seu entorno. Cura um cego, ressuscita uma criança, mas eis que o cardeal da Inquisição o vê e manda prendê-lo. O monólogo (só o cardeal fala) que se dá é absolutamente desconcertante e uma das mais maravilhosas criações literárias da história.
O cardeal está irritado. Ao entrar na cela, pergunta: “És tu? Tu?”. Mas, sem receber resposta, emenda: “Não respondas, cala-te. Ademais, que poderias dizer? Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada ao que já tinhas dito. Por que vieste nos atrapalhar?”. Sim, acusa o Redentor e diz: “Mas sabes o que vai acontecer amanhã? […] amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijou os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer carvão para tua fogueira, sabias?”. E passa a desferir sérias acusações contra o próprio Cristo sobre o notório “fracasso” de sua missão na Terra. Diz: “Não eras tu que dizias com frequência naquele tempo: ‘Quero fazê-los livres’? […] Durante 15 séculos nós nos torturamos com essa liberdade, mas agora isso está terminado, e solidamente terminado […] Contudo, fica sabendo que hoje, e precisamente hoje, essas pessoas estão mais convictas do que nunca de que são plenamente livres, e entretanto elas mesmas nos trouxeram a sua liberdade e colocaram obedientemente a nossos pés”. O cardeal diz que a liberdade oferecida por Jesus Cristo não poderia funcionar, pois os homens são rebeldes, e rebeldes não podem ser felizes; e que Jesus, ao rejeitar as tentações no deserto (Mateus, 4), recusou o verdadeiro milagre contido nas “três questões” oferecidas por Satanás – transformar as pedras em pães, jogar-se do alto do pináculo e ser amparado por anjos, e adorá-lo para dominar o mundo: “Porque nessas três questões está como que totalizada e vaticinada toda a futura história humana, e estão revelados os três modos em que confluirão todas as insolúveis contradições históricas da natureza humana em toda a Terra”. E completa: “Queres ir para o mundo e estás indo de mãos vazias, levando aos homens alguma promessa de liberdade que eles, em sua simplicidade e sua imoderação natural, sequer podem compreender, da qual têm medo e pavor, porquanto para o homem e para a sociedade humana nunca houve nada mais insuportável que a liberdade!”
A carga dessas acusações é pesadíssima, e faz pairar sobre nós a questão fundamental: estamos dispostos a assumir o ônus de nossa liberdade? Estamos, de fato, preparados para arcar com as consequências de nossas ações, ou continuaremos, indefinidamente, depositando nossas esperanças aos pés de um salvador terreno que nos prometa pão? “Porque” – diz o cardeal – “não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se […] Não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante”. E arremata dizendo que Jesus recusou “as únicas três forças na terra capazes de vencer e cativar para sempre a consciência desses rebeldes fracos para a própria felicidade: essas forças são o milagre, o mistério e a autoridade” – representados nas três propostas do Diabo. E os deuses terrenos, os ideólogos, oferecem a satisfação que nos aprisiona.
Toda a obra Os Irmãos Karamázov é absolutamente sublime, mas o ponto alto é “O Grande Inquisidor”. É o próprio Dostoiévski que diz, num comentário explicativo do capítulo que enviou ao seu editor, tratar-se do “ponto culminante do romance”, no qual intenta descrever “o retrato da blasfêmia máxima e a semente da ideia de destruição em nosso tempo, na Rússia [eu acrescentaria: em todo o mundo], entre os jovens desarraigados da realidade […] A rejeição não de Deus, mas do sentido de Sua criação. Todo o socialismo [eu acrescentaria: toda ideologia] proveio da negação do sentido da realidade histórica, e começou aí e terminou num programa de destruição e anarquismo”. (Joseph Frank, Dostoiévski – Vol. V – O manto do profeta, Edusp, p. 537).
Toda ideologia, seja de direita ou de esquerda, nega a realidade histórica, nega os pressupostos da liberdade e nega o princípio de falibilidade humana, pedras fundamentais da ordem da realidade – inclusive da realidade política. Nossa liberdade deve estar submetida à certeza de que não há soluções fáceis para a nossa condição no mundo, e só a plena consciência dos fundamentos da realidade pode nos livrar de sucumbir aos encantos ideológicos. Nem só de pão viverá o homem.
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Em tempo: Essa semana, por ocasião da campanha Setembro Amarelo, palestrei, na igreja Casa da Rocha, juntamente com pastores, teólogos e psicólogos, sobre o suicídio, problema cuja incidência vem aumentando, a cada ano, no Brasil e no mundo. Entre idosos os números já são bastante altos, tendo chegado a uma média de 8,9 mil nos últimos seis anos. O número entre jovens de 15 a 29 anos, apesar de seguir estável, é a segunda causa de morte; no Brasil é a quarta. No Brasil, a cada 45 minutos uma pessoa se suicida (cerca de 11 mil/ano). No mundo, esse número é de 40 segundos.
O suicídio é um problema seríssimo e toca fundo em nosso conceito de liberdade. Em Os Demônios, outro romance monumental de Dostoiévski, o suicídio entra como uma espécie de ideologia de superioridade moral, por meio do personagem ateu Kirílov. Pois se não há Deus, se não há sentido para a existência humana, o suicídio pode ser, mesmo, uma saída honrosa. As ideologias do nosso tempo têm procurado substituir a ideia de Deus ou mesmo de um fundamento transcendente para a existência humana, restando em seu lugar, o vazio. É preciso pensar e conversar sobre o assunto e, urgentemente, restaurar as bases de nossa civilização.
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