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[…] o ser humano sempre aponta para algo além de si mesmo, para algo que não é ele mesmo – para algo ou para alguém: para um sentido que se deve cumprir, ou para outro ser humano, cujo encontro nos dirigimos com amor. (Viktor Emil Frankl)
Estes tempos de pandemia têm suscitado a mim algumas reflexões interessantes, que tenho, inclusive, dividido com meus queridos alunos do ensino público e privado. Há algumas semanas o tema da aula on-line disponibilizada pela Secretaria da Educação, que deveria ser comentada e complementada por nós, era solidariedade. Resolvi aprofundar o assunto trazendo como base a vida e obra de um dos maiores seres humanos que já pisaram nessa terra: Viktor Frankl.
Viktor Emil Frankl nasceu em 26 de março de 1905, em Viena (Áustria), filho de Gabriel Frankl, servidor público no Ministério de Serviço Social, e de Elsa Lion. Seu interesse pelos problemas da psiquê humana foi bastante precoce; ainda estudante do ensino básico, começou a frequentar, à noite, aulas de Psicologia Aplicada na Universidade Popular; aos 15 anos enviou uma carta a ninguém menos que Sigmund Freud, e, tendo recebido resposta, passou a se corresponder com o Pai da Psicanálise por um longo período – cartas que, infelizmente, foram confiscadas e perdidas nos tempos da Segunda Guerra. Encontrou-o pessoalmente uma única vez, e, ao se apresentar, Freud disse: “Viktor Frankl. Viena, 2º Distrito, Czerningrasse 6, apartamento 25, certo?” – mostrando que a troca de cartas lhe haviam feito decorar o endereço do jovem Frankl.
Aos 18 anos, ingressou na faculdade de medicina e escolheu a Psiquiatria, passando a receber forte influência de Alfred Adler, cuja Psicologia do Indivíduo seria chamada de Segunda Escola Vienense de Psicoterapia (a primeira, evidentemente, era a Psicanálise freudiana, a terceira seria a sua).
No entanto, a influência dos dois mestres durou pouco tempo. A aproximação com Adler fez arrefecer seu interesse (não o seu respeito) por Freud, mas, em pouco menos de dois anos, Frankl foi expulso da sociedade de estudos conduzida por Adler por discordâncias. Passou, então, a desenvolver autonomamente suas impressões iniciais daquilo que viria a se tornar a Logoterapia ou Terapia do Sentido – sobre a qual falarei adiante.
Ao deixar a universidade, em 1930, trabalhou no Hospital Psiquiátrico de Viena e, posteriormente, passou a fazer atendimentos particulares, que foram sensivelmente prejudicados após a anexação da Áustria pela Alemanha nazista (o chamado Anschluss), em 1938, e lhe obrigaram a trabalhar no Hospital Rotschild, o único que admitia judeus à época. A esse respeito, Frankl tem um testemunho muito curioso – tragicômico, eu diria –, escrito em sua emocionante autobiografia O que não está escrito nos meus livros:
Nesse dia politicamente tão significativo, eu estava alheio a tal acontecimento, substituindo um colega numa palestra, intitulada “Nervosismo como sinal dos tempos”. De repente, alguém escancarou a porta – um homem da SA, totalmente uniformizado. “Isso é possível no governo de Schuschnigg?”, eu me perguntei. Evidentemente que esse homem da SA queria atrapalhar a palestra e me obrigar a encerrá-la. “Tudo pode ser possível”, pensei. “Fale agora de uma maneira que ele se esqueça do que pretendia fazer! Prenda sua atenção!” Olhei para seu rosto e não parei de falar. E ele ficou parado junto à porta como se tivesse criado raízes, até que eu encerrei minha palestra, meia hora mais tarde. Essa foi a obra-prima retórica da minha vida!
Em 1941 casou-se com Tilly Grosser, que era enfermeira no hospital onde trabalhava. A respeito do amor por Tilly, ele diz: “o ponto mais significativo de nosso relacionamento não foi aquele que costumamos imaginar, pois eu não me casei com ela por sua beleza, e ela não se casou comigo por minha ‘inteligência’ – e nos orgulhávamos disso, por esses não terem sido os motivos do nosso casamento. Claro que eu estava impressionado com sua beleza, mas fui conquistado por sua essência – como posso dizer? –, por sua compreensão da natureza, pela cadência do seu coração”.
Infelizmente, nove meses depois eles – Frankl, seus pais, um de seus irmãos (sua irmã conseguiu fugir para a Austrália) e Tilly – foram levados para campos de concentração nazistas. Ele e Tilly para o campo de Theresienstadt, onde Tilly foi obrigada a abortar um filho por conta de um decreto que proibia mulheres judias de engravidarem. De lá, eles foram enviados para Auschwitz e separados para sempre. Todos morreram, exceto Frankl.
Quando saiu, em 1945, soube que a esposa havia morrido em Bergen-Belsen, e que morreu logo após a libertação pelos ingleses, de tifo. Um detalhe absolutamente dramático, descrito por ele em sua autobiografia, vale ser mencionado, caro leitor, para que tenhas a dimensão da situação emocional de Frankl ao deixar o campo de concentração: “Eles [os ingleses] haviam encontrado 17 mil cadáveres por lá, e durante as primeiras seis semanas esse número aumentou em outros 17 mil. Tilly devia estar nessa última leva. Também me contaram que à noite, nas fogueiras dos seus acampamentos, os ciganos cozinhavam partes dos cadáveres em caçarolas, especialmente os fígados. Durame semanas fui perseguido pela imagem de ciganos comendo o fígado de Tilly...”.
Mas foi durante os anos nos campos de concentração que Frankl desenvolveu aquela que julgo ser uma das maiores armas contra um mal que, segundo o filósofo Sören Kierkegaard, é intrínseco ao ser humano, mas que, nos últimos séculos vem se agravando à medida que o individualismo avança: o desespero. Kierkegaard, em seu livro O desespero humano, diz:
Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.
Frankl, nos campos de concentração pelos quais passou, percebeu que havia um certo padrão de comportamento nos priosioneiros que conseguiam suportar melhor os terríveis sofrimentos pelos quais passavam – tortura, fome, frio, sede etc.: eram aqueles que, como diz Frankl em seu best-seller Em busca de sentido, decidiam agir “fora do esquema”, que para além de todas as condições, “demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação”; ou seja, percebiam haver “um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta, tanto exterior como interior”.
Tais pessoas, contra todas as circunstâncias, descobriam que “no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas”:
Elas provaram que, inerente ao sofrimento há uma conquista, que é uma conquista interior. A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe até o último suspiro configurar a sua vida de modo que tenha sentido. Pois não somente uma vida ativa tem sentido, em dando à pessoa a oportunidade de concretizar valores de forma criativa. Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do que é belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que – como no campo de concentração – dificilmente oferece uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de configurar o sentido da existência, precisamente na atitude com que a pessoa se coloca face à restrição forçada de fora sobre seu ser.
Algumas pessoas depositavam esse sentido numa realização simples fora daquele local, numa ação a ser realizada posteriormente, com a qual tinham assumido um compromisso de vida.
Dar-lhe-ei um exemplo que sempre dou aos meus alunos, atento leitor: suponhamos que eu mesmo tivesse uma tia muito amada, que morasse distante de mim – e que eu via pouco após ter passado toda a infância muito próximo a ela –, sofrendo de uma doença incurável, potencialmente mortal, a quem eu tinha visitado e prometido voltar em breve, mas, no dia seguinte, fui levado para um campo de concentração. O desejo de cumprir a promessa feita à minha tia preencheria minha vida de sentido, mantendo-me preso a ela e não me deixando sucumbir mesmo diante de circunstâncias absolutamente degradantes.
Frankl diz, ainda, que algumas pessoas se ligavam ao que ele chamou de sentido último, associado à fé religiosa ou a Deus. O fato é que, a partir dessa constatação Frankl desenvolveu a Logoterapia, ou Terapia do Sentido, cujo método consiste em concentrar-se não no presente ou passado, mas “nos sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro”. Ele explica:
A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido. Alguns autores sustentam que sentidos e valores são “nada mais que mecanismos de defesa, formações reativas e sublimações”. Mas, pelo que toca a mim, eu não estaria disposto a viver em função dos meus “mecanismos de defesa”. Nem tampouco estaria pronto a morrer simplesmente por amor às minhas “formações reativas”. O que acontece, porém, é que o ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores!
O fato é que, como diz Frankl em O sofrimento de uma vida sem sentido, “cada época tem suas neuroses e cada tempo precisa de sua psicoterapia. De fato, hoje não nos defrontamos mais, como nos tempos de Freud, com uma frustração sexual, mas, sim, com uma frustração existencial. E o paciente típico de nossos dias não sofre tanto, como nos tempos de Adler, de um sentimento de inferioridade, mas de um sentimento abismal de falta de sentido, que está associado a um sentimento de vazio interior, razão pela qual tendo a falar de um vazio existencial”.
Tal vazio só pode ser preenchido por um sentido, um algo a ser realizado pelo indivíduo que o sente e por mais ninguém. Costumo dizer que as pequenas metas, aquelas plenamente realizáveis com um pouco de esforço concentrado, são ótimas fontes de sentido. No entanto, uma pessoa, por exemplo, em depressão, tem muita dificuldade de encontrar tal estímulo, pois, para ela, o presente perdeu o sentido e não há como projetar-se para um futuro. Mas, como diz Frankl no Em busca de sentido:
Para quem entrega os pontos como pessoa, por não mais conseguir apoiar-se num alvo futuro, a forma de vida interior no campo de concentração acaba desembocando numa forma de existência retrospectiva. Dessa tendência de voltar para o passado já falamos em outro contexto. Ela se presta para a depreciação do presente com seus horrores. Ocorre, porém, que a depreciação do presente, da realidade envolvente, implica certo perigo. Isto porque podem ser facilmente esquecidas as possibilidades de influência criativa sobre a realidade, as quais não deixam de existir também no campo de concentração, como ficou demonstrado em diversos exemplos heróicos. A depreciação total da realidade oriunda da forma provisória de existência do recluso acaba seduzindo a pessoa a entregar os pontos completamente, a abandonar-se a si mesma, visto que de qualquer forma “tudo está perdido”. Essas pessoas estão se esquecendo de que muitas vezes é justamente uma situação exterior extremamente difícil que dá à pessoa a oportunidade de crescer interiormente para além de si mesma.
Sempre é possível encontrar um motivo para continuar, e é nisso que a logoterapia se concentra, em mostrar àqueles que sofrem pela falta de sentido, “a capacidade de suportar o próprio sofrimento, contudo, não é nada mais do que a capacidade de realizar o que chamo de valores de atitude. De fato, não é só o criar (relativo à capacidade de trabalho) que pode dar sentido à existência – falo nesse caso da realização de valores criativos –, nem somente a experiência, o encontro e o amor (relativo à capacidade de desfrutar da vida) – falo de valores vivenciais que podem fazer com que a vida tenha sentido –, mas também o sofrimento. Não se trata aqui só de uma possibilidade qualquer, senão da possibilidade de realizar o valor supremo, da oportunidade de realizar o mais alto valor, da ocasião de fazer cumprir o sentido mais profundo”.
Por isso esse artigo relaciona Viktor Frankl à nossa situação atual, cujos desdobramentos, ainda não devidamente calculados, podem trazer sofrimento a muita gente; e muitos, que infelizmente depositaram todo o sentido de suas vidas em suas realizações materiais, podem sofrer deveras por verem, por exemplo, uma crise financeira os levarem à repentina falência; não por incompetência, mas por circunstâncias absolutamente alheias à sua vontade e – pior! – de caráter, de certo modo, discutível (tal como a celeuma em torno dos reais benefícios do isolamento social e dos chamados lockdowns). O próprio isolamento social, com o afastamento de pessoas amadas, tem levado muitos à depressão.
Porém, o fato é que toda essa situação pode nos ter aberto uma oportunidade ímpar: não só a de buscarmos uma saída do isolamento existencial em que muitos já viviam, mas de uma renovação de nosso senso de comunidade e verdadeira solidariedade, bem como a possibilidade de muitos realizarem o sentido de suas vidas naquilo que Frankl chama de autotranscendência.
Ele explica: “o que pretendo descrever com isso é o fato de que o ser humano sempre aponta para algo além de si mesmo, para algo que não é ele mesmo - para algo ou para alguém: para um sentido que se deve cumprir, ou para um outro ser humano, a cujo encontro nos dirigimos com amor. Em serviço a uma causa ou no amor a uma pessoa, realiza-se o homem a si mesmo. Quanto mais se absorve em sua tarefa, quanto mais se entrega à pessoa que ama, tanto mais ele é homem e tanto mais é si mesmo. Por conseguinte, só pode realizar a si mesmo à medida que se esquece de si mesmo, que não repara em si mesmo”.
Muitos precisarão de ajuda – financeira, emocional e espiritual –, mesmo aqueles cujo individualismo os fez pensar serem absolutamente autossuficientes. Muita gente se verá diante de um abismo de perspectivas e de sentido para suas vidas. A frustração, a incapacidade de reparar um dano, o desespero, pode ser aplacado pelo redirecionamento de nossos esforços para o outro, para aqueles que, como nós, sofrerão os efeitos possivelmente devastadores da pandemia. Frankl nos explica com uma bela metáfora:
Essa autotranscendência da existência humana pode ser mais bem explicada se recorremos ao exemplo do olho. Haveis alguma vez vos dado conta do paradoxo de que a capacidade do olho de apreender o mundo depende de sua incapacidade de ver a si mesmo? Quando o olho vê a si mesmo ou algo de si mesmo? Só quando adoece. Se sofro de catarata, percebo-o sob a forma de uma nuvem; vejo então, em volta das fontes luminosas, uma auréola de cores do arco-íris. De um modo ou de outro, à medida que o olho vê algo de si mesmo, nessa mesma proporção perturba-se a visão. O olho deve ter a capacidade de não reparar em si mesmo. E o mesmo acontece ao homem. Quanto menos repara em si mesmo, quanto mais esquece a si mesmo, ao entregar-se a uma causa ou a outras pessoas, mais ele é o próprio homem, mais se realiza a si mesmo. Só o esquecimento de si conduz à sensibilidade e só a entrega de si amplia a criatividade.
Se nos comprometermos com esses ideais, como Frankl se comprometeu após sair vivo dos campos de concentração – isso fica claro numa entrevista emocionante que ele deu, em 1985, para uma TV sul-africana –, poderemos experimentar um verdadeiro renovo de nossa sociedade e, também, provavelmente, alguns pequenos milagres como os que Frankl experimentou até sua morte, em 2 setembro de 1997, e com os quais quero terminar esse artigo, que já se alonga:
O primeiro milagre foi seu segundo casamento, que ele descreve em O que não está escrito nos meus livros:
1946. Acompanhado por minha equipe médica, faço a visita ao meu departamento (de neurologia) na Policlínica de Viena. Estou saindo de um dos quartos e me dirijo a outro. Uma jovem enfermeira se aproxima de mim e me pede, em nome de seu chefe (da cirurgia de maxilar um assim chamado “leito de hóspede” na minha área para um paciente recém-operado. Eu concordo. ela se afasta com um sorriso agradecido e daí me volto para meu assistente e pergunto: — Você viu esses olhos...? Em 1947 ela se tornou minha mulher. Eleonore [Elli] Katharina, nascida Schwindt. Gabriele é nossa filha; Franz Vesely (professor de Física na Universidade de Viena), nosso genro; Katharina e Alexander, nossos netos.
O segundo milagre ocorreu no Brasil, e foi narrado pela Dra. Izar Xausa, a maior especialista em Logoterapia do Brasil (falecida em 2018) – fundadora da Sociedade Latino-Americana de Logoterapia (SOLAL), da Sociedade Brasileira de Logoterapia (SOBRAL) e também do Centro Viktor Frankl, no RS –, através do livro Viktor Frankl entre nós: a história da Logoterapia no Brasil e a integração pioneira da Logoterapia na América Latina.
Em 1984, foi organizado, em Porto Alegre, o I Encontro Latino-Americano Humanístico-Existencial, coordenado pela profª Izar e com a presença de Viktor Frankl, e duas coisas extraordinárias ocorreram. Ela narra: “Dois fatos marcaram, para sempre, a cidade de Porto Alegre na memória e no coração de Viktor Frankl. O primeiro foi o encontro com sua cunhada [irmã de sua primeira esposa, Tilly, que havia se mudado com o pai para o Brasil, especificamente para Porto Alegre, após a guerra e, ao saber do evento, foi ao seu encontro]. O segundo, profundamente emocionante, foi com Ella Mayer, nos braços de quem morrera Tilly”.
Que, inspirados pela vida e obra do grande Viktor Frankl, sejamos dignos de nossos sofrimentos e capazes de suplantá-lo em solidariedade ao nosso próximo e na realização do sentido de nossas vidas.