“O sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade.” (Theodore Dalrymple)
O caro leitor vai me perdoar, mas preciso ser repetitivo. Já escrevi outras vezes sobre o tema, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, pois a recorrência de tais eventos em nosso “debate” público insiste em resvalar na incivilidade. À época, disse eu, recorrendo ao filósofo romeno Gabriel Liiceanu e seu Do Ódio, sobre como aquele ódio comum, natural e por vezes inevitável, pode ser “induzido, argumentado, explicado, teorizado, previsto como um escopo, com um programa e posto de modo sistemático a trabalhar”. E que “tal é o ódio organizado intelectualmente como ideologia, que, desse modo, passa a ter ʻdignidade histórica e aura científica. E o crime que o acompanha é, a seu turno, enobrecido, porque a finalidade a que ele serve sonha com o bem para muitos e, no limite, para toda a humanidadeʼ”.
Todo ser humano normal sabe que o ódio é um sentimento, no mínimo, controverso. De acordo com o Aulete, o ódio é um “sentimento de profundo rancor e inimizade, geralmente produzido por medo, ofensa sofrida, inveja etc.”; e também “forte aversão a algo ou alguém”. Não é incomum sentirmos ódio de pessoas que praticam crimes e injustiças – ainda mais se os cometem contra nós. Sentimos ódio de situações que passamos e de comportamentos que sabemos ser prejudiciais. Mas, numa sociedade como a nossa, formada segundo valores cristãos, o ódio quase nunca é visto de maneira positiva, ou é sempre refreado pelas palavras de Jesus em Mateus: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (5,43-44). Nesse sentido, o ódio é um sentimento a ser evitado ou ser, cristãmente, suplantado pelo amor.
Usando abstratamente a “democracia” como objeto, cada grupo alimenta-se do ódio ao outro e luta violentamente para eliminá-lo
Porém, como dito acima, esse ódio comum – espontâneo, nas palavras de Liiceanu – pode ser utilizado como arma política e servir de motor para a ação. Diante de injustiças genéricas, como a “desigualdade” ou a “doutrinação”, é fácil tomar uma posição intransigente baseada única e exclusivamente em abstrações capazes de nos mobilizar e nos levar a ações que, não raro, terminam em violência. Óbvio que tal comportamento quase nunca se manifesta individualmente, antes é fruto do mimetismo. Usando abstratamente a “democracia” como objeto, cada grupo alimenta-se do ódio ao outro, sujeito-mediador, como diz René Girard, e luta violentamente para eliminá-lo. Diz o filósofo francês, em seu (raríssimo) Mentira romântica e verdade romanesca:
“Cada qual imita o outro, mas afirma, ao mesmo tempo, a prioridade e a anterioridade de seu próprio desejo. Cada qual vê no outro um perseguidor atrozmente cruel. Todos os relacionamentos são simétricos, os dois parceiros acreditam-se separados por um abismo insondável, mas nada se pode dizer de um que não seja igualmente válido para o outro. É a oposição estéril dos contrários, cada vez mais atroz e cada vez mais vã à medida que os dois sujeitos se aproximam um do outro e que seu desejo se intensifica.”
Tal é o ódio ideológico, fruto da arrogância e da pretensão à razão que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que, como diz a epígrafe de Dalrymple, sentimentalismo que desemboca em brutalidade. E não é só autorizado pelo desejo mimético; é louvado e cultivado, pois, como diz Liiceanu, é direcionado não mais a uma pessoa, mas a uma ideia, transformada na representação de um mal absoluto, um câncer que precisa ser extirpado. Nesse sentido, “fascista” e “comunista” não são mais os indivíduos e suas idiossincrasias, mas símbolos que apontam para a desestruturação daquilo que todo apaixonado político tem por mais sagrado: a sua ideologia ou quem a represente. E, nesse aspecto, há aqueles que ativamente odeiam e os que, sorrateiramente, alimentam esse ódio através de um senso de superioridade esnobe.
Dois casos que ocorreram, quase na mesma semana, servem-nos de exemplos categóricos do que estou dizendo. O primeiro deles ocorreu com militantes do Movimento Brasil Livre (MBL), que, num tour por universidades públicas da Região Sul do país, a fim de denunciar a deterioração do patrimônio público e, claro, atazanar a vida dos militantes que fingem estudar enquanto fazem da universidade polos de delírios revolucionários, foram brutalmente atacados, espancados e roubados numa emboscada armada por um grupo de supostos alunos. A intenção, provocativa, mas legítima, de pintar de branco as paredes dos centros acadêmicos, totalmente pichadas com mensagens radicalíssimas de esquerda, terminou com a hospitalização de João Bettega, um dos militantes do MBL.
O artigo 65 da Lei 9.605/98, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente” (Lei de Crimes Ambientais), é claro: “Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” é crime com pena de detenção de três meses a um ano, e multa. Não importa se os estudantes enxergam-nas como protestos legítimos, lei é lei. E mais: as universidades públicas são sustentadas por impostos de todos os contribuintes e devem ser preservadas por todos aqueles que utilizam tais espaços. Um aluno, por mais ideologicamente indignado que estiver, não tem o direito de depredar o patrimônio público. E, ainda que os membros do MBL os tenham provocado, a violência é injustificável, uma vez que as universidades têm seus próprios meios administrativos de lidar com tais situações, chamando a segurança interna ou mesmo a polícia.
Para todos os apaixonados políticos a violência política é não só aceitável, mas desejada e comemorada
No entanto, foi só o caso se espalhar que uma onda de festejos tomou conta das redes sociais, com esquerdistas comemorando e justificando efusivamente a violência. Houve até quem teorizasse e culpasse as vítimas sob a justificativa estúpida de serem de “extrema-direita”. A mídia mainstream ignorou quase completamente o caso, pois parece haver uma unanimidade de opiniões acerca do grupo político que praticamente conduziu o impeachment de Dilma Rousseff. A rádio Jovem Pan, a Revista Oeste e esta Gazeta do Povo foram dos pouquíssimos veículos que deram cobertura ao reprovável ataque. Não é por acaso que todos são veículos mais alinhados à direita.
Dias depois, o ministro Alexandre de Moraes foi hostilizado e agredido por uma família de brasileiros no aeroporto de Roma, na Itália. Segundo relatos, foi chamado de “bandido, comunista e comprado”, e seu filho teria levado um tapa. O caso ganhou ampla repercussão de todos os veículos de mídia e a reprovação, nas redes sociais, praticamente dos mesmos que comemoraram o ataque aos membros do MBL.
Isso não é uma coincidência. Quando, em 2021, Arthur do Val – o Mamãe Falei – foi duramente hostilizado por bolsonaristas na Avenida Paulista, em São Paulo, as justificativas se inverteram. Ou seja, para todos os apaixonados políticos a violência política é não só aceitável, mas desejada e comemorada. O famigerado 8 de janeiro é o ápice desse comportamento. Nossa democracia, jovem e frágil, só vai evoluir quando compreendermos que as divergências são necessárias para essa evolução; que discordar faz parte do processo e que as vitórias e derrotas são elementos fundamentais da ordem republicana. A paixão e a violência políticas são fruto de uma ignorância que adoece a alma. Somente a educação é capaz de curá-la.
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