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"Vocação é aquilo que não se pode deixar de ser". (Julián Marías)
Tenho advogado, sempre que posso, a importância da vocação. A história de minha própria vida, sendo um exemplo claro disso, não poderia me levar a uma postura diferente: sou alguém que, tendo passado uma década na área de tecnologia, de modo absolutamente inusitado descobri que gostava mais de pessoas do que de máquinas. Descobri, não, fui literalmente chamado. Já contei essa história algumas vezes, mas não aqui, nesta Gazeta do Povo. Portanto, repito aqui para ti, fiel leitor:
Fiz curso técnico em Eletrônica (1994) e Tecnologia em Processamento de Dados (1998), e desde meu primeiro emprego, como estagiário na área de eletrônica, trabalhei com PCs. Fiz carreira como Analista de Suporte e meu último cargo foi Coordenador de Suporte Técnico. Porém, em 2004 tive algo que reputo como uma revelação divina. Enquanto lia a primeira parte da inspirada autobiografia do monge trapista Thomas Merton , A montanha dos sete patamares, em que o poeta-sacerdote narra sua trajetória acadêmica, foi como se Deus apontasse o seu dedo para o livro e me dissesse: “esse é o seu caminho” – não o mosteiro, mas o magistério. O impacto disso em mim foi tão avassalador que pedi para ser demitido da empresa em que trabalhava à época – na qual havia sido admitido há menos de dois anos, convidado por um grande amigo – que carrego no peito e a quem não me canso de agradecer –, que era um dos sócios e diretor da área de TI. Sem nunca ter lecionado formalmente, sem ter formação para docência, decidi que deveria arriscar. Minha “sorte” é que meu diretor-amigo não estava tão maluco quanto eu, e me deu duas semanas para que refletisse, conversasse com meu saudoso pai e com minha esposa – com quem havia me casado naquele ano. Quinze dias depois, já com os pés no chão, resolvi aguardar um momento mais propício. Sábia decisão, pois fiquei na mesma empresa por mais dez anos – ou seja, trabalhei por vinte anos na área de tecnologia – e tive oportunidade não só de consolidar minha carreira, mas também de crescer profissionalmente e fazer amigos para toda a vida.
No entanto, mesmo trabalhando quase ininterruptamente – coordenava um departamento crítico, que funcionava 24/7 – em 2009 decidi voltar à faculdade e fazer Licenciatura em Filosofia, concluindo o curso no final de 2011; em 2013, finalmente, decidi que era hora de seguir minha verdadeira vocação. Coincidentemente, o concurso para professor do Ensino Básico, no Estado, estava aberto. Inscrevi-me, fiz a prova e passei. Também me inscrevi no mestrado e passei – tendo, inclusive, o projeto aprovado para bolsa de estudos. E como se a mão de Deus conduzisse tudo, no início de 2014 saí da empresa em que ficara por onze anos, iniciei na docência e no mestrado (concluído em julho de 2015). Hoje não me vejo fazendo outra coisa, e tudo o que já conquistei profissionalmente nessa nova carreira, em tão pouco tempo, só confirma minha acertada decisão.
O atento leitor pode perguntar, como muitos já fizeram: como foi mudar da área de exatas – que, historicamente, paga maiores salários –, numa carreira consolidada através de um investimento que, desde o ensino médio, passando pela faculdade, cursos diversos, dois estágios e algumas empresas, foi de mais de vinte anos? Como foi, inicialmente, receber como salário quase 4x menos do que recebia até então? Pois é, financeiramente não foi fácil, mas a sensação de estar fazendo aquilo que nasci para fazer tranquilizou-me – a mim e à minha família – nos momentos mais delicados.
Por isso, cada vez mais acredito no poder da vocação, mesmo sabendo que, em países como o nosso, em que existem as profissões que “dão dinheiro” e as que “não dão”, as pessoas tendem a escolher suas profissões não com base na vocação, mas na perspectiva de receberem um salário que lhes assegure um mínimo de dignidade. Esse é um fenômeno de países pobres ou com limitada liberdade econômica – tema do qual já tratei aqui, nesta Gazeta do Povo –, pois, em países mais livres e estáveis, os indivíduos tendem a escolher as profissões de acordo com suas vocações e não pelos salários. Um exemplo disso pode ser visto, indiretamente, no excelente documentário Lavagem Cerebral, produzido pelo comediante norueguês Harald Eia, que discute, dentre outras coisas, a divisão das profissões por gênero, chegando à conclusão que, em países mais livres, as mulheres tendem, em sua maioria, a escolher profissões mais ligadas à sua vocação humanista; porém, em países mais pobres e de economia mais regulada pelo governo, acabam por escolher algo que lhes garanta salários melhores.
A essas alturas o paciente leitor deve estar se perguntando: mas o que vem a ser, de fato, a vocação? O termo, aqui e em outros lugares, foi reduzido ao caráter meramente religioso, de vocação sacerdotal. No entanto, o conceito vai além. Responderei de acordo com as definições de dois filósofos insuspeitos: os espanhóis José Ortega y Gasset e seu principal discípulo, Julián Marías. Ortega diz, no ensaio ¿Qué es vida?, que:
Ordinariamente, por “vocação” entende-se o sentido de ser chamado, pela vida, à prática de um ofício ou profissão, isto é, a uma das ocupações típicas já disponíveis na sociedade – uma vocação para ser artista, professor, soldado, comerciante, monge etc.. Mas é claro que essa é uma maneira imprecisa de empregar o termo “vocação” [...] Entretanto, ninguém sente que alguém tem vocação para ser professor, artista ou soldado genericamente, mas para sê-lo do modo mais individual e concreto. Pode até acontecer que o modo mais individual de ser, digamos, soldado, se apresente de forma idêntica em muitos seres humanos. Eu não tomo a expressão “mais individual” para significar “exclusivo” ou “incomparável”, mas sim para significar algo totalmente concreto, não algo vago, genérico ou sem o seu complemento total de determinação. No entanto, ter uma vocação para um determinado ofício ou profissão, que o eu é em parte, nunca é algo que seja adequadamente transmitido pelos nomes gerais dos ofícios ou profissões, pois há inúmeras maneiras diferentes de ser professor, médico, intelectual, frade etc.
Ou seja, ainda que o chamado vocacional seja destinado a uma profissão específica, cada indivíduo o será de modo individual e concreto, e não de modo genérico. Não se trata, portanto, somente de possuir uma profissão ou exercer uma atividade, apesar de essa ser uma parte da vocação; esta, na verdade, de acordo com Julián Marías num ensaio em que analisa a obra de seu mestre, Ortega: circunstancia y vocación, “é única, rigorosamente pessoal; é a vocação em que cada um consiste mais propriamente, e coincide com o eu de cada um”. Já em Ortega: las trayectorias, dirá que “a vocação também não é escolhida, porém não seria correto dizer que me encontro com ela; antes ela me encontra, me chama, e correlativamente a descubro; não me é imposta, e sim apresentada, e embora não esteja em minhas mãos ter ou não ter essa vocação, permaneço frente a ela com uma essencial liberdade: posso segui-la ou não, ser fiel ou infiel a ela”. Ou seja, também não se trata de algo determinista, mas de seguir ou não um chamado interior. É, essencialmente, pautada na radicalidade da liberdade humana.
Diante do exposto, tenho defendido que todos, sem exceção, têm uma vocação, algo que, para além das habilidades naturais para realizar determinadas atividades, é algo com a qual cada indivíduo, como diz Viktor Frankl – um exemplo perfeito de vocacionado que também apresentei aqui, nesta Gazeta do Povo – assumirá “seu destino inevitável, assumindo com esse destino todo o sofrimento que se lhe impõe”, pois “nisso se revela, mesmo nas mais difíceis situações, mesmo no último minuto de sua vida, uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência” (Em busca de sentido, grifo meu). Desse modo, não importa o quanto você ganha, se será rico ou pobre, se será feliz – no sentido mais material do termo – ou não; o que importará, de fato, é a realização de seu “destino inevitável”, cuja concretização se dará pelo reconhecimento da verdadeira vocação. E mais: garanto que, em se tratando de uma profissão, a possibilidade de sermos bem-sucedidos financeiramente na área para o qual somos vocacionados é muito maior do que naquela que escolhemos somente pelo dinheiro, sendo obrigados a viver a vida toda fazendo algo para o qual não fomos chamados. Creio, inclusive, que esse é o motivo do atraso de muitos países subdesenvolvidos, cuja intervenção estatal encurrala os cidadãos em atividades que são apenas um meio para um fim menos nobre, embora necessário, como o dinheiro.
Por isso, tenho desafiado meus alunos a pensarem mais seriamente em suas vocações. Primeiramente, analisando aquelas atividades para as quais demonstram uma aptidão natural, e depois meditando sobre as possibilidade de melhor empregar tais habilidades – inclusive convidando seus pais ou responsáveis para fazerem esse exercício vocacional, desafiando a visão reducionista das profissões que “dão dinheiro”. Para isso, também precisamos de um ambiente economicamente mais adequado a esse objetivo, dinamizando, sobretudo, as possibilidades dos mais pobres. Não incitando utopias, mas ampliando as perspectivas para todos. Desse modo, teremos mais motivos para buscarmos uma mudança real em nosso país, pautada não em esperanças messiânicas, mas no investimento profundo em nossa verdadeira vocação – seja ela qual for, sendo todas dignificadas não pela utilidade ou pelo salário, mas pelo modo individual e concreto com o qual a realizamos; de modo que, cada um estando exatamente onde deve estar, seremos muito mais úteis para chegarmos onde desejamos.