“Muito bem” – pensei – “o conhecimento torna uma criança inapta para a escravidão”. Instintivamente, assenti à proposição; e, a partir desse momento, entendi o caminho direto da escravidão para a liberdade. (Frederick Douglass)
Em meu artigo da semana passada, analisei as observações precisas do poeta e monge trapista Thomas Merton, cujo ensaio, uma perspectiva cristã a respeito do movimento Black Power americano, no calor dos acontecimentos, apontava para uma contradição: de que o movimento poderia sucumbir, em sua busca por autonomia, à prisão ideológica marxista. Curiosamente, no mesmo período, outro simpatizante do Black Power parecia ter compreendido melhor que o próprio movimento a necessidade de independência dos negros americanos, e trocava o radicalismo revolucionário por outro ainda mais efetivo: a liberdade garantida pela Constituição americana; seu nome era Walter Edward Williams, que morreu na semana passada, dia 1.º de dezembro, e a quem gostaria de, modestamente, oferecer minha homenagem neste breve texto.
Walter Williams nasceu em 31 de março de 1936, na Filadélfia, filho de Catherine Morgan Urchette e de um pai ausente, Walter, que os abandonou quando ele tinha entre 2 e 3 anos de idade. Sua mãe, mulher prudente e trabalhadora, cuidou o melhor que pôde dele e de sua irmã, Catherine, inclusive levando-os, sempre que possível, ainda pequenos, a passeios culturais a fim de estimular-lhes a inteligência. Como ele lembra em sua autobiografia, Up from the projects: an autobiography: “Muito cedo, minha mãe apresentou a mim e à minha irmã a biblioteca pública da Filadélfia. Quando nos mudamos para o norte da Filadélfia, passamos muitas manhãs de sábado ou domingo na biblioteca principal da cidade. Ela também nos apresentou o Museu de Arte da Filadélfia e o Instituto Franklin, com suas exposições científicas. Como o museu de arte ficava perto da biblioteca, nosso passeio de sábado ou domingo geralmente incluía uma visita lá ou ao aquário da cidade. Raramente visitávamos o Instituto Franklin, porque ele cobrava uma taxa de admissão. Durante a década de 1980, repeti esse padrão, aos sábados e domingos, com minha própria filha, levando-a frequentemente ao instituto”.
Williams começou a trabalhar bem cedo, e também a sofrer cedo os prejuízos causados pela intervenção estatal
Tal costume, mesmo diante da pobreza material, livrou o pequeno Walter e sua irmã daquilo que o economista depois reconheceria como a pior pobreza de todas, a comportamental ou espiritual, que, segundo ele diz em seu célebre Race & Economics – how much can be blamed on discrimination, “se refere a condutas e valores que impedem o desenvolvimento de famílias saudáveis, de uma ética de trabalho e de autossuficiência. A ausência desses valores provoca, virtualmente, estilos de vida patológicos que incluem dependência de drogas e álcool, crime, violência, encarceramento, ilegitimidade, famílias monoparentais, dependência [do Estado] e erosão da ética do trabalho”. Segundo ele, um dos principais agentes dessa pobreza espiritual é a dependência gerada pelo Estado de bem-estar social, cujas “boas intenções nem sempre produzem bons resultados”.
Williams começou a trabalhar bem cedo, e também a sofrer cedo os prejuízos causados pela intervenção estatal. Aos 10 anos, iniciou como engraxate. Depois, trabalhou na Sears Roebuck e naquele que foi seu emprego favorito na adolescência, o restaurante Horn and Hardart Baking, famoso por suas máquinas de fast food; sua alegria juvenil era poder comer tudo o que quisesse. Posteriormente, descobriu aquele que seria seu inimigo por toda a vida, o Estado interventor. Trabalhava numa indústria de chapéus, quando uma costureira, ao descobrir que ele estava na folha de pagamento, denunciou o dono da empresa por violar as leis de trabalho infantil. Após a visita de um fiscal do trabalho, Williams foi demitido.
Tal experiência o marcou profundamente, e fez com que ele empreendesse uma verdadeira batalha contra a intervenção estatal. Segundo ele, o “Estado de bem-estar social fez pelos negros americanos o que nem a escravidão, nem as leis Jim Crow ou o pior racismo foram capazes de fazer: destruir a família negra”. Isso por uma lógica muito simples: “se você tributar algo, receberá menos; mas se subsidiá-lo, obterá mais. E o que temos feito é subsidiar o comportamento desleixado”. O governo, com seus programas de assistência social, tem fomentado uma cultura de dependência estatal das mais nocivas. Conforme Williams registra em Race & Economics:
Juntamente com o colapso dramático na estrutura familiar negra, houve um crescimento surpreendente na taxa de ilegitimidade [filhos de pais não casados]. A taxa de negros nessa situação era de apenas 19% em 1940, mas disparou no fim dos anos 1960, chegando a 49% em 1975. Em 2000, a ilegitimidade negra era de 68%, e, em algumas cidades, mais de 80%. Altas taxas de ilegitimidade não significam apenas pobreza e dependência, mas também contribuem para a patologia social observada em muitas comunidades negras: altas taxas de violência e sexo predatório entre jovens, e, como observou o sociólogo Charles Murray, uma comunidade não muito diferente daquela retratada em O Senhor das Moscas. Vários estudos apontam os programas de bem-estar como os principais contribuintes para vários aspectos da pobreza comportamental.
Em 1958, sua mãe se casou novamente, com um amigo de infância chamado Thomas Burchett, um modelo de responsabilidade e virtude. Terminando o high school, se mudou para Los Angeles, para morar com seu pai, e entrou na Los Angeles City College. Sua relação com o pai não foi bem sucedida, então voltou para a Filadélfia, entrou na Temple University e passou a dirigir um táxi para pagar a mensalidade. E foi nessa época que conheceu aquela sua alma gêmea, Conchetta Taylor, a Connie, que, como ele disse numa entrevista, foi uma influência civilizadora em sua vida. Connie, que morreu em 2007, foi uma das grandes responsáveis pelo sucesso de sua carreira acadêmica e intelectual.
Em 1959 foi convocado para o Exército, o que atrasou em dois anos seus planos. Suas desventuras no Exército – incluindo uma defesa própria, na corte marcial, por desobediência, e uma carta enviada ao presidente John F. Kennedy – é minuciosamente relatada em sua autobiografia, Up from the Projects. Retornando, já casado com Connie, mudou-se para Los Angeles a fim de terminar seu bacharelado em Economia na California State College (hoje California State University), graduando-se em 1965. Em 1967 obteve o título de mestre, e, em 1972, doutorou-se em Economia pela University of California (Ucla). Nessa época, Williams era um radical, como ele diz: “eu simpatizava mais com Malcolm X que com Martin Luther King, porque Malcolm X era mais radical e estava disposto a enfrentar a discriminação da maneira que eu achava que deveria ser enfrentada, incluindo talvez o uso da violência”. Mas seus estudos econômicos o levaram a perceber, como dito anteriormente, que o verdadeiro inimigo dos negros era a intervenção estatal.
A obra de Williams, infelizmente ainda não publicada em português, traz a marca de seu profundo comprometimento com a verdade dos fatos
Seu excelente documentário Good Intentions, gravado em 1985 para a CBS, é um contundente estudo de como a intervenção estatal prejudica os mais pobres. Ele analisa quatro principais áreas – educação pública estatal, regulações trabalhistas restritivas, salário mínimo e programas de inclusão – em que o governo, com suas boas intenções, causou atraso educacional, dependência e desemprego. Suas críticas às leis de salário mínimo são contundentes, pois demonstram, com dados precisos, o fato incontestável de que, se você retira a liberdade de negociação salarial para contratar jovens inexperientes, você os retira do mercado de trabalho, pois nenhum empregador aceita pagar um alto salário (em relação à capacidade produtiva) para um aprendiz. Ele demonstra, com detalhes, em Race & Economics:
O efeito da lei do salário mínimo fica mais claro se nos colocarmos no lugar de um empregador e perguntarmos: se devemos pagar um salário de US$ 7,25 por hora independentemente de quem será contratado, que tipo de trabalhador escolheremos contratar? Claramente a resposta, em termos de lucro e eficiência econômica, é contratar alguém cuja produtividade seja igual ou superior a US$ 7,25 por hora. Se esses trabalhadores estiverem disponíveis, não vale a pena para a empresa contratar aqueles cuja produção vale, digamos, apenas US$ 4 por hora. Mesmo se um empregador estivesse disposto a treinar tal trabalhador, o fato de que ele deve receber um salário maior que o valor de mercado de sua produção torna o treinamento no trabalho uma proposta pouco atraente.
Walter Williams, como homem negro – e tal qual aquele que fora seu melhor amigo por décadas, Thomas Sowell –, recebeu muitas críticas por suas posições conservadoras e liberais. Quando diz que nem mesmo a escravidão foi um impeditivo para o progresso dos negros nos EUA, trazendo à luz dados impressionantes sobre geração de riqueza, família, excelência moral e empreendedorismo mesmo entre a população escravizada, nos leva a refletir sobre as alegações de que os índices de desigualdade atuais são herança da escravidão. Nesse sentido, podemos encontrar similaridades entre os EUA e o Brasil. Williams também analisa em profundidade – assim como Sowell em Discriminação e Disparidades – a natureza das discriminações, apontando que há uma série de fatores combinados para os mais variados preconceitos existentes nas sociedades, e que, apesar de a cor da pele ser, muitas vezes, um fator notório, não é impeditivo e há muito mais a ser observado.
A obra de Williams, infelizmente ainda não publicada em português, traz a marca de seu profundo comprometimento com a verdade dos fatos, com os valores mais caros a uma vida feliz, com a ciência econômica – cuja tendência é, conforme diz no comovente documentário biográfico Suffer no fools, “devolver o juízo às pessoas” –, e, sobretudo, com a Liberdade. A rigorosa e reconhecida honestidade intelectual de Williams também é um fato a ser enaltecido. Thomas Sowell, no emocionante panegírico que escreveu sobre o amigo, diz que “ao contrário de muitos outros professores da atualidade, ele fazia questão de nunca impor suas opiniões aos alunos. Aqueles que leem suas colunas de jornais sabem que ali ele expressou suas opiniões de forma ousada e inequívoca. Mas não em sala de aula”. Sowell diz mais:
Ele foi meu melhor amigo por meio século. Não havia ninguém em quem eu confiasse mais ou cuja integridade eu respeitasse mais. Como ele era mais jovem do que eu, escolhi-o para ser meu testamenteiro literário, para assumir o controle de meus livros depois que eu partisse. Mas sua morte é um lembrete de que ninguém realmente tem nada a dizer sobre essas coisas. […] Como pessoa, Walter Williams era único. Não ouvi ninguém mais ser descrito “como Walter Williams”. Como faixa preta em caratê, Walter era uma figura difícil. Uma noite, três homens o atacaram – e dois acabaram em um hospital. Outro lado de Walter diz respeito à relação com sua esposa, Connie. Ela o ajudou a entrar na pós-graduação – e, depois que ele recebeu seu Ph.D., ela nunca mais precisou trabalhar, nem mesmo para preparar seu café da manhã. Walter gostava de ir ao trabalho às 4h30. Era a única pessoa que não tinha problemas para encontrar uma vaga para estacionar na rua, no centro de Washington. Mais ou menos por volta das 9 horas, Connie – agora acordada – ligaria para Walter e eles se cumprimentariam com ternura. Já não veremos seu costume de novo. E essa é a nossa perda.
Assim como a obra, a morte de Walter E. Williams foi ignorada pela imprensa e pela intelligentsia brasileiras – exceto por esta Gazeta do Povo –, há muito acostumadas com o discurso único. Mas meu desejo é que este artigo desperte o interesse de mais pessoas pela inteligência e pela perspicácia de Walter Williams – quem sabe um tradutor e uma editora? –, e que, tão logo quanto possível, ainda que após a sua morte, Williams nasça para nós, brasileiros.
Que sua alma descanse sem paz, ao lado de sua amada Connie, e que Deus traga consolo à sua dedicada filha, Devon Williams.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS