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“Naquela época, em nossa pequena cidade, essa música era tocada em todas as festas de aniversário e até em recepções de casamento. Minhas amigas […] e eu tocávamos a todo vapor durante nossa festa de final de ano, para desgosto de nossos professores […]. Acreditávamos que éramos ʻos filhosʼ [the children], que éramos ʻaquelesʼ [the ones] que tornariam o mundo mais brilhante com o nosso amor. Não fazíamos ideia de que a canção era sobre nós, as criancinhas miseráveis africanas, sobre a nossa pobreza, a nossa desgraça, a nossa fome. Não sabíamos que as ʻpessoas morrendoʼ [people dying] eram os africanos, e que estes graciosos músicos americanos apelavam ao resto do mundo para nos salvar.” (Obianuju Ekeocha, Target Africa)
Não se fala de outra coisa. O documentário A noite que mudou o pop, que conta a história da música We Are the World e está disponível na Netflix, “teve a melhor estreia da semana em filmes falados em inglês, com estonteantes 19,2 milhões de horas assistidas e 11,9 milhões de execuções”, de acordo com reportagem recente, e é, de fato, um filme muito emocionante. Para aqueles de minha geração, que assistiram à estreia do lendário clipe – se não me engano, no Fantástico –, ver os bastidores, como tudo foi genialmente organizado e realizado, é realmente de arrancar lágrimas. Se você, leitor, ama arte como eu, vai gostar e se emocionar também. A união dos titãs Lionel Ritchie, Michael Jackson, Quincy Jones e outros 40 e tantos artistas resultou num hit absoluto, atemporal, que rendeu em torno de US$ 55 milhões, venceu três Grammys e fez o mundo todo imitar as partes de cada um dos solistas da inesquecível canção.
O documentário traz a história por trás não só da música, mas da única noite de gravação das vozes que participaram da empreitada espetacular. Mostra como a ideia, surgida a partir do Live Aid, de Bob Geldof, impulsionou o ator, cantor e respeitadíssimo ativista pelos Direitos Civis Harry Belafonte num projeto que visava a mudar o panorama da fome na África – sobretudo na Etiópia. Belafonte foi à África, voltou impressionado e decidido a fazer algo. De acordo com Lionel Ritchie, Belafonte disse: “vemos brancos salvando negros; mas não vemos negros salvando negros. Isso é um problema. Precisamos salvar o nosso povo da fome”. Entrou em contato com o empresário de mídia e produtor Kenneth “Ken” Allan Kragen, e recrutaram Ritchie, que estava no topo das paradas com seu primeiro álbum solo e a música All night long; este convidou Quincy Jones para a produção, e Jones trouxe Michael Jackson para ser o parceiro de Ritchie na composição.
O documentário A noite que mudou o pop é, de fato, um filme muito emocionante. Para aqueles de minha geração, que assistiram à estreia do lendário clipe, ver os bastidores é realmente de arrancar lágrimas
A escolha dos demais artistas foi realizada de acordo com a sua relevância à época – alguns, como Stevie Wonder e Ray Charles, por seu status de lendas vivas. E Kragen convenceu Belafonte de que seria fundamental ter artistas brancos envolvidos projeto, no que ele aceitou. Ou seja, a ideia era reunir os maiores nomes da música pop do momento, tais como Paul Simon, Kenny Rogers, Tina Turner, Dionne Warwick, Al Jarreau, Kenny Loggins, Cyndi Lauper, Daryl Hall e outros, para uma gravação antológica. Então a poderosa agenda de contatos de Ken Kragen entrou em ação para convidar a maioria dos nomes envolvidos. Bruce Springsteen, que faria o último show de sua turnê, em outra cidade, um dia antes da gravação, também aceitou. O pernóstico Bob Dylan, idem. Não tinha como dar errado – se tudo desse certo, obviamente.
O maior desafio era conseguir juntar todos esses grandes artistas (com suas agendas próprias, seus compromissos, suas turnês) a fim de gravar a canção. A saída – arriscadíssima, mas provavelmente única – seria aproveitar a mesma data do American Music Awards (AMAs), pois a maioria dos artistas estaria em Los Angeles para a premiação. Com um detalhe: Lionel Ritchie – o cicerone da coisa toda – seria o apresentador. Mas isso aumentou a pressão pela composição, pois, até aquele momento, Ritchie e Jackson não tinham uma data definida, e agora tinham apenas uma semana. Ele diz que, a partir daquele momento, ele e Michael pareciam “possuídos”. Compuseram a letra e a música em tempo recorde e entregaram a Quincy Jones, que amou.
Após a gravação do instrumental e das vozes guia, feita por Jackson e Ritchie, quatro dias antes da gravação – que seria em 28 de janeiro de 1985, dia do AMAs –, fitas cassete (pois é, não existia internet) foram enviadas, secretamente, a cada um dos artistas, para que ouvissem e estudassem a música. As partes individuais, os solos, foram decididos depois, com a ajuda do arranjador vocal Tom Bahler, amigo de longa data de Jones. A decisão de gravarem todos juntos, no mesmo dia, também se deu por conta do tempo. Ou seja, teria de funcionar tudo ao mesmo tempo agora. E o trabalho de fazer com que cada um daqueles artistas icônicos, sendo cada um uma estrela em si mesma, trabalhasse em conjunto por uma única noite após uma cansativa premiação, ficou nas mãos de Lionel Ritchie.
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Após horas de tensão, com alguns voos atrasados, com os produtores e Ritchie correndo para o backstage do AMAs nos intervalos a fim de irem combinando e se atualizando dos preparativos, eis que a premiação acaba e, tendo conseguido guardar o máximo de segredo que conseguiram, todos correram para o lendário estúdio A&M, em Los Angeles, para a gravação. Dentre as curiosidades que o filme nos mostra, estão: a falta de Prince, que alegou não conseguir cantar com mais ninguém; Stevie Wonder querendo encaixar versos em suaíli na música – o que levou o cantor country Waylon Jennings a abandonar as gravações (no vídeo é possível ver o cantor abandonando seu posto e saindo); Al Jarreau se adiantou e encheu a cara de vinho, obrigando Jones a gravar logo sua parte antes que ele “perdesse o controle por completo”; e o total desconcerto de Bob Dylan com toda aquela muvuca e sem conseguir compreender o que ele fazia e faria ali. Quem o ajudou foi Stevie Wonder, que, com paciência de mestre, foi ao piano e, imitando a voz Dylan, cantou para ele a sua própria parte, ajudando o amigo a fazer o inesquecível trecho solo que conhecemos na versão final. A gravação terminou na manhã do dia 29, todos absolutamente exaustos, mas felizes por terem feito história.
Mas e os objetivos de We Are the World, foram atingidos? Aquelas dezenas de milhões chegaram ao destino e ajudaram os africanos? Como está a fome atualmente na África? Bem, ao que tudo indica, o bom-mocismo gerou muitas vantagens aos artistas – o próprio Lionel Ritchie diz que sua vida mudou após a gravação –, mas teve pouca (para não dizer nenhuma) efetividade para os destinatários. As críticas ao projeto surgiram, anos depois, com alegações de desvio de dinheiro por governos corruptos, e mesmo afirmando que a música arrecadou “mais de US$ 80 milhões em ajuda humanitária para etíopes devastados pela fome”, os próprios africanos hoje já declaram que “injetar ajuda monetária na África, repetidas vezes, fez, na verdade, mais mal do que bem”.
Em 2011, esta Gazeta do Povo relatava que a Etiópia sofria com problemas de fome e seca. Em matéria atual, a Deutsche Welle constata que, por causa da seca, de conflitos externos e da corrupção, a “crise de fome na Etiópia pode ser pior do que as anteriores”. E diz: “De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, cerca de 20 milhões de pessoas na Etiópia precisam urgentemente de assistência alimentar”. Ou seja, nada mudou. O esforço dos artistas americanos foi em vão – pelo menos para os africanos –, pois o assistencialismo é uma boa e lucrativa maneira de sinalizar virtudes, mas péssimo para solucionar problemas reais.
O bom-mocismo gerou muitas vantagens aos artistas – Lionel Ritchie diz que sua vida mudou após a gravação –, mas teve pouca (para não dizer nenhuma) efetividade para os destinatários
Magatte Wade, empresária e escritora senegalesa – que acabou de lançar um livro sobre o tema, The heart of a Cheetah –, afirma, no disruptivo documentário Poverty Inc., dedicado a denunciar a indústria da pobreza no continente africano:
“As celebridades têm grandes corações e sempre os reconhecerei por isso. No entanto, essa não é a questão aqui, de forma alguma. Como sabemos, preocupar-se não é suficiente, e, nesta situação específica, muitas vezes é mais prejudicial. Pense nisso por um momento: todos os materiais que você usa, todas as imagens que você usa, certamente criam na cabeça das pessoas a impressão de que os africanos são pessoas indefesas, que não conseguem alcançar nada por si mesmas. Elas [as imagens] ajudam, basicamente, a programar o seu cérebro para pensar assim: ʻA única saída que temos é ajudá-losʼ. As pessoas que têm mais dinheiro estão se programando para dizer para o pobre: ‘Você não é meu parceiro’; e estão programando a mente do pobre para pensar: ‘Não sou bom o suficiente. Eles são melhores do que eu, são superiores a mimʼ.”
Já Obianuju Ekeocha (Oju) – citada na epígrafe –, cientista biomédica, ativista pró-vida e escritora nigeriana, em seu livro Target Africa – Ideological Neocolonialism of the Twenty-First Century, vai mais longe e afirma que “há um novo colonialismo em nosso tempo – não de terras ou recursos naturais, mas do coração, da mente e da alma da África; é um colonialismo ideológico”, e acusa indivíduos célebres, como Bill e Melinda Gates, e fundações como a Ford e a famigerada Open Society, de George Soros, não só de se promoverem usando as mazelas do continente, mas de fomentarem ideologias que têm minado a capacidade de autodeterminação do povo africano. O “racismo filantrópico” é feito com a anuência de governantes corruptos, que recebem os bilionários donativos ocidentais e entregam seus países aos caprichos de ideologias que são totalmente contrárias à cultura e à ancestralidade africanas. Por exemplo, ela diz que a sanha por controle populacional nos países africanos não leva em consideração que “os africanos são os povos mais filoprogenitivos do mundo”, e que “mesmo com cuidados médicos abaixo do padrão na maioria dos lugares, as mulheres são valentes durante a gravidez. E assim que seus bebês nascem, elas abraçam graciosa e heroicamente suas responsabilidades maternais”. A infestação da ideologia abortista é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelas mulheres africanas.
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Obianuju Ekeocha e Magatte Wade, essas bravas mulheres africanas, afirmam, categoricamente, a mesma coisa: o que a África precisa é de livre comércio, não de ajuda – “trade, not aid”. E Oju, citando outros pensadores do continente, arremata:
“Dambisa Moyo, uma economista zambiana, identificou o investimento direto estrangeiro, o microcrédito e o comércio como os verdadeiros caminhos para o desenvolvimento. J.K. Kwakye, um economista africano do Instituto de Assuntos Econômicos, em Gana, pediu ʻengenharia financeiraʼ para mobilizar recursos da política assistencialista para o desenvolvimento da África. Sua proposta inclui reestruturação orçamentária, desenvolvimento de mercados de capitais domésticos, maior mobilização de remessas, emissão de títulos da diáspora, securitização de futuros fluxos de divisas e fuga reversa de capitais. Nessas e em outras análises, a verdade emerge de que existe um caminho alternativo ao desenvolvimento que não dependa de ajuda externa, e os africanos devem ansiar por este tipo de desenvolvimento.”
Ou seja, aquilo que We Are the World e tudo o que envolveu essa maravilhosa produção nos oferece verdadeiramente é um emocionante entretenimento. O problema dos países pobres da África ou de qualquer outro continente não pode ser resolvido com assistencialismo. Somente o combate à corrupção, a geração de riqueza, o avanço tecnológico e a autonomia financeira podem levar tais países à prosperidade. Por isso, assista ao documentário de Bao Nguyen, emocione-se com os relatos singulares de Lionel Ritchie e seus companheiros, mas saiba que nada daquilo adiantou ou adiantará.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos