O “retorno da geopolítica” tem sido frequentemente mencionado para explicar os acontecimentos atuais, em que assistimos à erosão da ordem internacional do pós-Guerra Fria, ao declínio do multilateralismo, ao ressurgimento de conflitos de alta intensidade, à rejeição à globalização e ao ressurgimento dos nacionalismos.
A geopolítica, em sua essência, refere-se ao estudo das relações entre o poder político e o espaço geográfico. Nesse sentido, é inegável que as tensões e conflitos atuais podem ser mais bem compreendidos quando analisados sob sua lente. Dois exemplos emblemáticos são as questões recentemente levantadas por Donald Trump acerca do Canal do Panamá e da Groenlândia.
Trump ameaçou retomar o controle do Canal do Panamá, criticando as tarifas cobradas pelo país para a passagem de navios americanos, e voltou a propor a compra da Groenlândia, algo que ele já havia cogitado em seu primeiro mandato. Ambas as declarações provocaram reações indignadas dos governos do Panamá e da Dinamarca, que reafirmaram sua soberania: o canal está em território panamenho e a maior ilha do mundo não está à venda.
Mas por que Trump levantou essas questões? Convido o leitor a observar um mapa-múndi, preferencialmente com uma projeção azimutal polar, onde o Oceano Glacial Ártico aparece no centro. Sob essa perspectiva, a posição da Groenlândia se destaca como a maior ilha do mundo, interposta entre a Rússia e a América do Norte. Essa localização geográfica, por si só, empresta à ilha enorme importância estratégica para a segurança dos EUA. Boa parte dos mísseis balísticos intercontinentais que possam ser lançados da Rússia em direção aos EUA – e vice-versa – sobrevoariam a Groenlândia.
Os estrategistas americanos sabem disso há muito tempo. Em 1951, os EUA firmaram um acordo com a Dinamarca que permite o estabelecimento de “áreas de defesa” na Groenlândia, autorizando a construção e operação de instalações militares. A Base de Pituffik, localizada na ilha, é um ativo estratégico crucial para os interesses americanos no Ártico.
Essa localização geográfica, por si só, empresta à ilha enorme importância estratégica para a segurança dos EUA
Além disso, as mudanças climáticas estão transformando rapidamente a geopolítica daquela região. O derretimento do Oceano Glacial Ártico está criando novas rotas comerciais viáveis economicamente. A Rota Norte, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico ao longo do litoral russo, tem recebido grande atenção da Rússia e da China, que trabalham para apresentá-la como uma alternativa mais curta e eficiente à rota pelo Canal de Suez. A relevância da Groenlândia, portanto, não está apenas ligada à segurança militar, mas também ao potencial controle de novas rotas marítimas que poderiam mudar o equilíbrio do comércio global.
Da mesma forma, o Canal do Panamá, apesar de ser uma obra do início do século XX, continua desempenhando um papel essencial no tabuleiro geopolítico. Atualmente, cerca de 40% do tráfego de contêineres dos EUA passa pelo canal, o que destaca sua importância econômica e estratégica. Desde sua inauguração, em 1914, o canal oferece um atalho que economiza 8 mil milhas náuticas para os navios que viajam entre as costas leste e oeste dos EUA, reduzindo o tempo de deslocamento em pelo menos 20 dias.
Os americanos construíram o canal, e depois o controlaram, até 1999, quando o Panamá assumiu a administração da via marítima. Essa transferência de poder não diminuiu a importância estratégica do canal, mas alterou a dinâmica geopolítica. A partir de 2016, quando China e Panamá estabeleceram relações diplomáticas, a influência chinesa na região cresceu significativamente. Hoje, uma empresa chinesa opera dois dos cinco principais portos adjacentes ao canal: Balboa, no Pacífico, e Cristóbal, no Caribe. Isso não apenas reforça a presença da China na América Latina, mas também insere o Canal do Panamá na disputa global de poder entre Washington e Pequim.
Além disso, as mudanças climáticas também impactam o Canal do Panamá, ameaçando sua eficiência. A operação das eclusas depende de grandes volumes de água doce provenientes de reservatórios locais. Contudo, períodos de seca prolongados têm reduzido a disponibilidade de água, forçando o canal a limitar o número de travessias e a aumentar as tarifas, o que gera insatisfação entre os usuários, como foi destacado por Trump.
Assim, tanto a Groenlândia quanto o Canal do Panamá exemplificam como a geopolítica continua a moldar o mundo contemporâneo. Enquanto a Groenlândia é peça-chave na disputa pelo Ártico e pelo controle de novas rotas marítimas, o Canal do Panamá é mais um ponto de tensão na rivalidade crescente entre EUA e China. Esses exemplos demonstram que a geografia, longe de ser apenas um elemento estático, é um dos motores centrais das disputas de poder no século XXI.
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