A incerteza sobre o compromisso dos EUA com seus aliados tem implicações profundas para a estabilidade do Ocidente e para a segurança global.
A incerteza sobre o compromisso dos EUA com seus aliados tem implicações profundas para a estabilidade do Ocidente e para a segurança global.| Foto: Win McNamee/EFE/EPA/POOL
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A arquitetura de segurança da Europa, construída no pós-guerra, sempre teve a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como seu pilar central. A presença dos EUA, a mais poderosa potência militar da história, garantiu aos europeus, nos últimos 80 anos, a certeza de proteção contra qualquer ameaça ao continente.

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Esse compromisso se materializou no famoso artigo 5º do tratado fundador da aliança, que estabelece que um ataque a um membro será considerado um ataque a todos.

Entretanto, como venho destacando em minhas colunas mais recentes aqui na Gazeta do Povo, a confiança mútua – elemento fundamental em qualquer aliança militar – está sendo seriamente comprometida pela guinada brusca feita por Trump na política externa norte-americana.

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Os europeus, assim como alguns outros aliados não europeus, já não têm certeza se poderão contar com os EUA. Alguns eventos ocorridos nos últimos dias reforçam essa percepção.

Dois países da OTAN passaram a questionar se devem manter seus planejamentos de aquisição dos modernos caças F-35, fabricados pela americana Lockheed Martin. O ministro da Defesa de Portugal declarou que o país, anteriormente inclinado a adquirir essas aeronaves para substituir os antigos F-16, poderá rever sua posição.

Na mesma linha, o recém-empossado primeiro-ministro do Canadá determinou a revisão do contrato para a compra de 88 caças, um negócio avaliado em aproximadamente 13 bilhões de dólares, com entregas previstas já a partir do próximo ano.

Ainda mais significativo do que essas revisões de compra, foi um evento que ilustra o abalo na relação entre EUA e seus aliados europeus. Em Paris, por convocação do presidente Emmanuel Macron – uma voz cada vez mais ativa pela autonomia estratégica da Europa – ocorreu uma reunião que contou com a presença de 34 Chefes de Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas de países da OTAN – inclusive do Canadá –, da União Europeia, além dos representantes da Austrália, Japão e Nova Zelândia. 

O assunto principal do encontro foi a guerra na Ucrânia, com os altos escalões militares presentes sendo convocados a oferecerem um plano que proporcione garantias de segurança confiáveis para a Ucrânia no caso de um cessar-fogo com a Rússia. O detalhe mais notável é que os Estados Unidos não foram convidados.

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A quebra da confiança se espalha como um rastilho de pólvora e começa a afetar outros aliados tradicionais dos EUA, também fora da Europa. Os australianos, por exemplo, começam a ficar preocupados com o destino do multibilionário programa AUKUS.

Trata-se de um pacto assinado em 2021 entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos que prevê, além do aumento do compartilhamento de informações e tecnologia, a construção de submarinos de ataque com propulsão por energia nuclear para a Austrália.

À época, a celebração desse acordo causou uma forte tensão entre os três países e a França, uma vez que motivou o cancelamento da venda de submarinos franceses para a Austrália.

Para a Marinha australiana, entretanto, era a chance de ingressar no seletíssimo clube dos países que possuem submarinos de propulsão nuclear – uma arma que elevaria muito sua capacidade de dissuasão contra a presença de forças navais adversas em suas águas.

Pois bem, agora, depois inclusive de a Austrália já ter enviado o primeiro cheque de 500 milhões de dólares para os EUA, de um total de US$ 3 bilhões prometidos para a indústria de construção naval americana como parte do acordo, começam a se ouvir ruídos estridentes acerca da viabilidade do negócio.

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Elbridge Colby, indicado por Trump para subsecretário de defesa, e que já havia admitido anteriormente ser "cético" acerca do AUKUS, declarou na semana passada que está preocupado de que a venda de submarinos para a Austrália possa deixar os marinheiros americanos "vulneráveis" em relação a uma crise em Taiwan porque os submarinos não estarão "no lugar certo na hora certa". Ou seja, Colby acredita que os EUA não podem se dar ao luxo de vender submarinos para a Austrália em um momento em que essas embarcações podem fazer falta em um eventual enfrentamento com a China em torno de Taiwan.

Evidentemente, os australianos não estão gostando dessa história, que acontece no exato momento em que uma flotilha composta por três navios de guerra chineses completa uma muito incomum circum-navegação da Austrália, inclusive com a realização de exercícios de tiro que causaram transtornos para voos comerciais entre Austrália e Nova Zelândia. 

Vozes preocupadas já se fazem ouvir em Camberra, levantando, inclusive, a possibilidade de os australianos voltarem a procurar os franceses para garantir a modernização de sua frota de submarinos, já em fase final de vida útil.

A crescente incerteza sobre o compromisso dos EUA com seus aliados tem implicações profundas para a estabilidade do Ocidente e para a segurança global

Se essa desconfiança continuar a se espalhar, países tradicionalmente alinhados a Washington poderão buscar alternativas estratégicas, seja por meio de uma maior autonomia em defesa – como Macron defende para a Europa –, seja pela diversificação de parcerias com potências emergentes.

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Em um mundo onde a competição entre grandes potências se intensifica, a percepção de um aliado hesitante pode ser tão desestabilizadora quanto a ausência de um aliado. 

O impacto dessa crise de confiança ainda está se desenrolando, mas uma coisa é certa: o status quo da segurança internacional, que por décadas teve os EUA como fiador incontestável, não é mais garantido.