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A política internacional mantém sua sequência de eventos surpreendentes, quebrando a rotina para aqueles que a acompanham. A semana passada começou com a grave crise política na Coreia do Sul e terminou com o inesperado recrudescimento da guerra civil na Síria, que, em uma velocidade impressionante, resultou na queda do ditador Bashar al-Assad, no poder há quase um quarto de século.
Neste texto, deixarei a questão coreana para outra oportunidade e me concentrarei na Síria, uma vez que os acontecimentos em curso por lá alteram completamente a balança de poder no Oriente Médio.
A guerra civil na Síria não é novidade. Ela começou em 2011, com a brutal repressão do regime aos protestos ocorridos no país durante a "Primavera Árabe".
Nos treze anos que se seguiram até o momento atual, o país tornou-se palco de um sangrento e complexo conflito entre o governo de Bashar al-Assad e vários grupos, em uma disputa de todos contra todos, que, em determinados momentos, era interrompida por alianças de ocasião.
Esse conflito tem cobrado um altíssimo preço dos cidadãos sírios, já tendo causado a morte de mais de 500 mil pessoas e levado milhões a abandonarem suas casas e cidades.
Potências globais, como os EUA e a Rússia, bem como potências regionais, como Israel, Irã e Turquia, interferem há anos no desenrolar do conflito, apoiando os grupos que melhor atendem a seus próprios interesses políticos e estratégicos.
A Rússia e o Irã foram duas potências decisivas para a manutenção de Bashar al-Assad no poder por tanto tempo
Os russos prestaram constante apoio militar, especialmente por meio de sua força aérea, que atuou incontáveis vezes em apoio às forças de Assad. Esse apoio não foi gratuito. A Síria é um país importante para a Rússia do ponto de vista geoestratégico, pois os russos mantêm a base naval de Tartus, no litoral sírio do Mar Mediterrâneo, seu único acesso direto a esse mar.
O apoio iraniano, em material, treinamento militar e inteligência, também foi fundamental para que Assad se mantivesse no poder. Além disso, o grupo Hezbollah, financiado e armado pelos iranianos, combateu ao lado das forças do ditador, frequentemente com mais motivação e competência do que o próprio exército sírio. Outros representantes iranianos, como milícias xiitas iraquianas, também foram mobilizados para ajudar Damasco ao longo dos muitos anos de guerra civil.
Ocorre que, justamente esses três atores, tão fundamentais para a manutenção do regime sírio no poder, estão completamente envolvidos em seus próprios problemas. Os russos, atolados na guerra contra a Ucrânia, e o Hezbollah e o Irã, envolvidos no conflito contra Israel, não podem dedicar, no momento, a atenção que sempre dispensaram ao governo sírio. Essa retração criou um vácuo estratégico na Síria, que foi explorado pelos grupos que acabaram de depor o presidente Assad.
O grupo Ha'yat Tahrir al-Sham (HTS), que liderou a bem-sucedida ofensiva contra as forças do governo sírio, antes conhecido como Frente al-Nusra, é uma organização jihadista que nasceu afiliada à rede terrorista Al Qaeda, da qual, entretanto, diz ter se distanciado em 2016.
Apesar disso, continua a ser considerada uma organização terrorista pelos EUA, Rússia e ONU. Seu avanço pelo território sírio, em pouco mais de uma semana, foi espetacular. Partindo do noroeste do país, conquistou sucessivamente as cidades de Aleppo, Hama, Homs, até chegar à capital, Damasco, tomando-a praticamente sem luta.
O sucesso da ofensiva do HTS estimulou diversos outros grupos rebeldes à ação. No leste, o grupo denominado Forças Democráticas da Síria (FDS), formado pela minoria curda, avança para o centro do país, aumentando o território sírio sob seu controle. No sul, as cidades de Dara e Sweida passaram a ser controladas por outros grupos, da minoria drusa.
Com a queda do regime, a grande questão que se impõe é saber o que acontecerá a partir de agora na Síria. As chances de esfacelamento do país são reais. É possível imaginar, por exemplo, o surgimento de um governo sunita do grupo HTS na porção oeste do país, um governo curdo na porção nordeste e, talvez, uma espécie de Estado-tampão na faixa norte, na fronteira com a Turquia, liderado por grupos aliados a esse país. Nesse contexto, novas disputas pelo poder certamente surgirão.
A queda de Assad é, sem dúvidas, uma boa notícia para os israelenses, uma vez que o Hezbollah e o Irã perdem um aliado e uma base de operações para ações contra Israel
Entretanto, não há nenhuma garantia de que o novo governo em Damasco venha a ser mais amigável aos israelenses.
A evolução da crise na Síria representa um divisor de águas, não apenas para o regime de Bashar al-Assad, mas para toda a arquitetura geopolítica do Oriente Médio. O colapso do governo sírio gera um vazio de poder com implicações imprevisíveis, com real possibilidade de surgimento de novos conflitos, internos ou mesmo regionais.
Enquanto Rússia e Irã arriscam perder uma posição estratégica crucial, atores como Turquia e Israel enfrentam desafios complexos para proteger seus interesses em um cenário cada vez mais fragmentado. A queda de Assad pode até enfraquecer alianças adversárias de Israel no curto prazo, mas também pode criar condições para o surgimento de forças ainda mais radicais e instáveis.
Assim, a crise síria não apenas redefine a correlação de forças na região, mas também desafia as potências globais e regionais a reconsiderarem suas estratégias em um Oriente Médio onde a incerteza continua sendo a única constante.
Conteúdo editado por: Aline Menezes