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O número de países comandados por ditadores é maior do que o das democracias plenas pela primeira vez no mundo desde 1995. Em 2022, os níveis globais de democracia caíram abaixo do resultado de 1986, segundo o relatório anual sobre democracia do instituto sueco V-Dem. Nessa linha, a aproximação do Brasil aos regimes autoritários da Rússia, China, Cuba, Venezuela e Nicarágua, para citar alguns, preocupa muito.
Ao invés de seguir os trâmites para adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e ficar ao lado das democracias plenas do mundo, o Brasil parece querer se alinhar aos países não-democráticos. Mas isso não é tudo. O próprio Brasil não se enquadra na categoria de democracia plena e, pelo que tudo indica, deve se afastar desse ideal com as propostas em andamento.
Aparentemente, a democracia não é um valor caro para muitos poderosos no Brasil.
O relatório do V-Dem divide os regimes governamentais em duas categorias: autocracia e democracia. Cada uma delas, por sua vez, possui duas classificações dentro de si. A autocracia tem duas versões: ditadura e autocracia eleitoral. Segundo o instituto, 72% da população mundial — 5.7 bilhões de pessoas — vive em autocracias.
A ditadura é classificada como o regime sem multipartidarismo, sem eleições para o Executivo e sem princípios democráticos como a liberdade de expressão, de associação, e as eleições livres, justas e regulares. A autocracia eleitoral é o regime que, embora tenha eleições multipartidárias para o Executivo, não possui respeito pleno aos princípios fundamentais, como liberdade de expressão e de associação, que garantem a existência de eleições livres, justas e regulares. Já a democracia eleitoral tem eleições multipartidárias livres e justas para o Executivo e graus satisfatórios de liberdade de expressão, mas ainda pode melhorar suas instituições e seu Estado de Direito. A democracia plena, por sua vez, já atingiu todos os requisitos da democracia eleitoral, e tem poderes Judiciário e Legislativo atuando de forma independente em relação ao Executivo, assim como a proteção das liberdades civis, garantindo maior igualdade perante a lei.
Os defensores da democracia não podem ficar tranquilos com Lula na Presidência do Brasil.
O relatório lista a Alemanha e os países nórdicos como exemplos de democracias plenas, enquanto as ditaduras são representadas por países como a China, Cuba, Nicarágua e a Coreia do Norte. Conforme noticiou o Estadão, “o estudo ainda descreve um crescimento preocupante de outros tipos de regime, as chamadas democracias falhas e autocracias eleitorais. Esses governos são uma espécie de modelo híbrido, nos quais existem ao mesmo tempo — em maior ou menor grau –— características de regimes autocráticos e democráticos”.
O Brasil foi listado como uma democracia eleitoral, mas que ainda está longe de ser uma democracia plena. Até aí, faz total sentido o relatório. Porém, chama atenção que o estudo cita o governo de Jair Bolsonaro como negativo para a democracia, e a eleição de Lula como algo positivo, pois Lula teria “um histórico de respeito às instituições democráticas durante seu mandato anterior”. É difícil compreender como o principal líder do partido que esteve envolvido nos dois maiores esquemas de corrupção do país (Mensalão e Petrolão) possa ser rotulado como alguém que tem histórico de respeitar as instituições democráticas.
Regular a mídia e restringir a liberdade de expressão sempre foi um sonho petista e, agora, o governo Lula tem apoio da própria mídia para fazer isso.
A despeito da informação polêmica do relatório sobre Lula, mesmo para quem considera Lula democrata, a atual aproximação do Brasil com os regimes autoritários não pode passar despercebida. Como já mencionado na coluna diversas vezes, Lula tem dito uma bobagem atrás da outra sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia, tudo para tentar agradar Vladimir Putin: já culpou a Ucrânia pela guerra, já disse que a Ucrânia deveria abrir mão da Crimeia e outros absurdos do tipo. Essa interferência infeliz na soberania de outro país, com um governo eleito democraticamente, não é uma conduta democraticamente correta.
O Wall Street Journal (WSJ), inclusive, publicou um texto dizendo que Lula se aproxima “dos inimigos da América”. Não só da Rússia, Lula fez questão de se aproximar politicamente do regime chinês e do Irã, além de “seus amigos de Cuba, Bolívia e Venezuela”. Para a respeitada jornalista e membro do conselho editorial do WSJ, Mary Anastasia O’Grady, autora do texto, Lula está tão obcecado em demonstrar sua independência dos Estados Unidos que escolheu “se aliar a um dos mais notórios estados antidemocráticos do mundo e um dos principais exportadores de terrorismo”.
O’Grady também destacou que Lula não só apoia déspotas, como também deixa a porta aberta “para toda e qualquer fonte de capital, inclusive de grupos do crime organizado que entraram na política”. Diferente do instituto sueco, o jornal americano lembra bem das gestões anteriores do petista: “A última vez que o Partido dos Trabalhadores de Lula esteve no poder, foi pego pela compra de votos no Congresso. Mais tarde, envolveu-se no maior esquema de propina da história da América Latina”.
Mas o problema de Lula com a democracia não está apenas lá fora. Além de apoiar regimes autoritários pelo mundo, o governo de Lula apoia iniciativas que podem enfraquecer direitos fundamentais dos brasileiros e, com isso, fragilizar ainda mais a nossa jovem democracia. Alguns exemplos claros de direitos que estão sendo restringidos no Brasil de Lula são a liberdade de expressão, a liberdade econômica e os direitos de propriedade.
O governo Lula quer calar o povo na marra, mesmo sem o apoio do Congresso Nacional e dos representantes do povo
Regular a mídia e restringir a liberdade de expressão sempre foi um sonho petista e, agora, o governo Lula tem apoio da própria mídia para fazer isso nas redes sociais. O PL 2630, conhecido como “PL das fake news”, porém, mais apropriadamente chamado de “PL da Censura”, pode restringir a liberdade de expressão no Brasil, incentivar a desinformação e quebrar o modelo de negócios de empresas como Google, Meta (dona do Facebook, WhatsApp e Instagram) e também do Twitter. O PL pretende responsabilizar as plataformas por conteúdos de terceiros, incentivando mecanismos de censura prévia e, consequentemente, reduzindo o debate público de temas importantes para o cenário nacional.
As pessoas desavisadas acham que o projeto é bom, afinal, ele está sendo defendido diariamente em canais como Globo e CNN. Até alguns membros do Supremo Tribunal Federal já defenderam publicamente a aprovação desse PL, não que isso devesse fazer parte das atribuições de um ministro da Suprema Corte. Mas essas defesas, aparentemente, não são desinteressadas. Com o projeto, a Globo pode negociar com as plataformas digitais vantagens semelhantes às que conseguiu no mercado de publicidade de TV, e pode lucrar, pelo menos, R$ 230 milhões por ano, informou a Notícias da TV (Uol) no último dia 2. Talvez a apresentadora da CNN defenda tanto o projeto com a mesma esperança. Veículos menores, como a própria Notícias da TV, não têm muitas chances de ganhar com isso.
Para evitar novos retrocessos, o Brasil não pode seguir o exemplo dos regimes em processo de "autocratização", ou seja, que estão corroendo seus valores democráticos
O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que a regulação da internet e das redes sociais vai acontecer mesmo que o Congresso Nacional não apoie. Ou seja, o governo Lula quer calar o povo na marra, mesmo sem o apoio do Congresso Nacional e dos representantes do povo. Para quem foi eleito dizendo que iria salvar a democracia, será que essa postura do governo Lula é mesmo democrática? Não parece. A decisão do Congresso Nacional de não regular ou mesmo de querer mais tempo para debater o assunto e evitar erros deve ser soberana, e jamais poderia ser objetivo de chantagem por parte do Executivo ou do Legislativo.
E não dá pra falar de ataques à democracia no governo Lula III sem citar as invasões do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que explodiram já no começo do governo. Até o início deste mês, o MST já invadiu quase o mesmo número de propriedades (56) que invadiu durante todo o governo Bolsonaro (62). O MST invadiu desde terras privadas produtivas da empresa Suzano, até as sedes do Incra e da Embrapa, instituições que realizam importantes políticas públicas. E, obviamente, ninguém foi punido por isso. Aliás, houve até uma recompensa: o governo Lula trocou a superintendência do Incra em 19 estados e levou o líder máximo do MST, João Pedro Stédile, em sua comitiva da viagem à China. Grande exemplo de respeito aos valores democráticos (contém ironia!).
E para evitar novos retrocessos, o Brasil não pode seguir o exemplo dos regimes em processo de "autocratização", ou seja, que estão corroendo seus valores democráticos e caminhando em direção a um regime autoritário. As 10 iniciativas mais comuns nesses países são, pela ordem: (1) censuras na mídia; (2) repressão às organizações da sociedade civil; (3) interferência na liberdade acadêmica e cultural; (4) restrição à entrada e saída de organizações da sociedade civil; (5) interferência na liberdade de discussão das mulheres; (6) redução da amplitude de participação e consulta; (7) interferência na liberdade de discussão dos homens; (8) redução do engajamento da sociedade; (9) redução da transparência das leis e da previsibilidade do seu cumprimento; e (10) desrespeito aos argumentos contrários.
Aparentemente, a democracia não é um valor caro para muitos poderosos no Brasil, que querem controlar o debate público e impor regras sem o consentimento e aprovação do Congresso Nacional, que representa a sociedade por meio de parlamentares eleitos democraticamente. Para algumas pessoas, a separação entre os Poderes é apenas uma mera formalidade. Na prática, elas acreditam que um Poder pode e deve interferir no outro para se tornar ainda mais forte e reduzir as liberdades individuais. Algo muito diferente do que é praticado nas democracias plenas.
Diante de tantos absurdos, os defensores da democracia não podem ficar tranquilos com Lula na Presidência do Brasil. O que estamos vendo agora é uma tentativa de encolher ainda mais a democracia brasileira, e deixar nosso país ainda mais distante de se tornar uma democracia plena. Nenhum político, juiz ou governante pode ser dono da opinião pública e usar seus poderes para intimidar e perseguir quem pensa diferente. O Estado de Direito, a democracia e, principalmente, as liberdades individuais, são conquistas civilizacionais importantes, que não podem ser restringidas. Até quando vamos permitir que esses valores e direitos fundamentais sejam atacados?