Ouça este conteúdo
Entre as mais famosas fábulas sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está a de que ele vai “ajudar o pobre a comprar um carrinho”. No Dia da Indústria, em 25 de maio, o governo Lula anunciou seu novo programa para compra de carros, nem tão populares. Contando com os atrasos de rotina, no dia 5 de junho foi publicada a medida provisória — MP 1175/23 — do programa que prevê descontos para a compra de novos veículos, tanto por pessoas físicas como jurídicas. Ué, mas não era para beneficiar as pessoas mais humildes?
O governo Lula vai gastar R$ 1,5 bilhão em créditos tributários: R$ 500 milhões para estímulo à troca por carros menos poluentes, R$ 700 milhões para caminhões e outros R$ 300 milhões para ônibus e vans. As montadoras receberam do governo os estímulos tributários para dar descontos de R$ 2 mil a R$ 8 mil em carros. De R$ 33,6 mil a R$ 80,3 em caminhões. E, por fim, de R$ 38 mil a R$ 99,4 mil nos ônibus e vans. E você acredita mesmo que era para beneficiar as pessoas mais humildes?
Como sempre, parece que o governo prefere buscar o atalho em vez de investir em soluções estruturais.
Quanto mais pontos um veículo acumular, mais desconto ele tem: o programa avalia a fonte de energia, consumo energético, preço e conteúdo nacional dos componentes (não esqueça desta parte!). Para obter o desconto máximo de R$ 8 mil, o carro precisa fazer 90 pontos. Até agora, o veículo mais barato no programa é o Renault Kwid, comercializado a partir de R$ 58,9 mil. Já os descontos de ônibus e caminhões dependem do tipo de carga e da quantidade de pessoas transportadas.
O benefício fiscal para o setor automotivo pode parecer bom, mas nem de longe vai ajudar a baratear, de forma sustentável, os carros para os mais pobres ou os caminhões e ônibus para quem trabalha no setor logístico e de transporte de passageiros no longo prazo. Em primeiro lugar, embora as marcas possam dar mais descontos que os possibilitados pelo governo, as concessionárias não irão, necessariamente, seguir os preços mais baixos das montadoras.
Um país com altos gastos públicos e uma moeda desvalorizada não ajuda em nada no poder de compra de cidadãos e empreendedores.
Além disso, a MP tem validade de apenas quatro meses. Mas o buraco é ainda mais em baixo. Uma análise do CreditSuisse publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo estima que o programa deve durar menos de um trimestre, “considerando que os R$ 500 milhões implicam subsídios para 62 mil a 250 mil carros, em comparação com cerca de 6 mil veículos leves produzidos por dia em 2022”. Eles acreditam que o programa deve se esgotar em 2 meses.
Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin, o ministro da Fazenda Fernando Haddad e companhia fizeram um plano pouco elaborado, sem capacidade de resolver os problemas principais da indústria automobilística e do baixo poder de compra dos brasileiros. Como sempre, parece que o governo prefere buscar o atalho em vez de investir em soluções estruturais.
O brasileiro precisa de um país mais competitivo, com um custo menor de produção e mais opções de qualidade de veículos e de preços.
“Não adianta só diminuir o preço. É necessário aumentar o poder aquisitivo e reduzir o endividamento e a taxa de juros para melhorar o acesso ao crédito e a inadimplência cair”, disse Marco Aurélio Nazaré ao Estadão, do Conselho Nacional da Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (Abla).
Para poder reduzir a taxa de juros de forma substancial, sem gerar aumento de inflação, porém, o governo Lula deveria reduzir gastos e colocar as contas públicas em dia para que a necessidade de combater a inflação diminuísse, e assim, a taxa de juros também. Não é isso que o governo tem feito, entretanto: ele escolheu atacar o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, como se ele simplesmente quisesse manter a taxa de juros alta e a inflação não fosse uma preocupação séria no Brasil. Um país com altos gastos públicos e uma moeda desvalorizada não ajuda em nada no poder de compra de cidadãos e empreendedores, inclusive quando o assunto é automotivo.
Será que Lula está repetindo erros do governo Dilma? Em 2011, a presidente Dilma Rousseff lançou o Inovar-Auto, que visava promover o “adensamento da cadeia automotiva do Brasil”, incentivar pesquisa e desenvolvimento e aumentar a eficiência energética. Para atingir as metas, o governo Dilma criou uma alíquota adicional de 30 pontos percentuais do IPI sobre carros, que poderia ser reduzida a zero pelas empresas que se habilitassem no programa, conforme explica o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento de Dilma, Nelson Barbosa. As empresas participantes no programa poderiam compensar os 30 pontos adicionais de IPI com a aquisição de insumos no mercado local, incluindo fornecedores do Mercosul.
“A compensação temporária do adicional de IPI por compras de insumos locais foi o maior alvo de protestos e posterior condenação no âmbito do Brasil na OMC”, admite Nelson Barbosa, sobre a condenação na Organização Mundial do Comércio por prática ilegal de comércio exterior. Embora o programa tenha possibilitado o aumento de empregos no setor automobilístico no curto prazo, no fim das contas, ele foi só uma proteção temporária para a indústria nacional, a “proteção à indústria nascente”, um filme que já vimos diversas outras vezes e que não nos levou ao desenvolvimento semelhante ao dos países mais capitalistas.
Até quando Lula e os petistas vão seguir insistindo em soluções populistas, passageiras, de curto prazo e que bagunçam ainda mais o setor?
O Inovar-Auto foi, na verdade, “uma mistura de política de conteúdo local – comprar autopeças no país qualificava para realização de etapas fabris – e protecionismo do bem final, visto que montar o carro no Brasil usando um mínimo de conteúdo local também credenciava ao programa. Ou seja, o pilar principal do Inovar-Auto é uma política de fechamento da indústria à competição externa”, explica o economista e professor da FGV, Samuel Pessoa.
Graças ao programa, as importações despencaram antes mesmo da grande recessão suprimir a demanda por carros no país. Com 35% de tarifa de importação e o custo de transporte, os carros importados eram sobretaxados com a tarifa de IPI de 30 pontos percentuais. “Em suma, o Inovar-Auto fez a indústria automotiva nacional ficar momentaneamente competitiva. Mas a competitividade não veio do aumento de produtividade ou da melhoria dos produtos, mas sim de proteção”, conclui, acertadamente, o economista.
As soluções que as montadoras, consumidores, caminhoneiros e empresas precisam é que o governo brasileiro corte gastos públicos.
E quando o pacote de bondades acabar, como ficam os caminhoneiros? Na última vez, houve um excesso de oferta de transportes que acabou na greve dos caminhoneiros. Não seria surpreendente se isso acontecer novamente. Encher o mercado de caminhões pode gerar um problema de excesso de oferta de transportes que, no futuro, pode gerar manifestações para termos uma nova tabela de frete. Mais uma vez, o Brasil seguirá com o "custo país" elevado, sem mudanças estruturais que melhoram a nossa competitividade.
Mas, além de “estimular” de modo errado a indústria automotiva, a nova medida de Lula prejudica os pobres para tentar beneficiar a classe média — se é que a classe média realmente pode comprar carro zero. A menor faixa do programa é igual ou menor que R$ 70 mil. A maior faixa beneficiada fica entre R$ 90 e 120 mil. Será mesmo que querem beneficiar os mais humildes?
Para ajudar os brasileiros a comprar carros, uma das soluções mais óbvias é diminuir o custo Brasil e, paralelamente, as barreiras à importação. Isso impactará tanto no que se refere ao custo de peças nas montadoras nacionais como nos carros em si. O brasileiro precisa de um país mais competitivo, com um custo menor de produção, com mais segurança jurídica, e mais opções de qualidade de veículos e de preços. A redução do custo país e a abertura de mercado beneficiam todos, até mesmo as montadoras, que teriam de concorrer com as estrangeiras em vez de terem de se escorar nas burocracias governamentais.
Outra questão é deixar de cobrar impostos mais altos que dos outros setores — e não só por quatro meses. “De acordo com dados da CNI de 2017, enquanto a carga tributária da agropecuária foi de 6% e a do setor de serviços, de 23%, a indústria de transformação pagou 44% de impostos. Em nenhum lugar do mundo um setor consegue andar com as próprias pernas tendo que suportar uma carga tributária tão pesada”, lembra um editorial do Partido Novo sobre o assunto.
Em suma, as soluções que as montadoras, consumidores, caminhoneiros, empresas e demais envolvidos com o mercado automotivo precisam é que o governo brasileiro corte gastos públicos (para baixar a taxa de juros de forma estrutural, como dito anteriormente), reduza o custo Brasil, abra o mercado e reduza impostos de forma ampla para termos veículos mais baratos e de melhor qualidade. As evidências econômicas mostram isso. Até quando Lula e os petistas vão seguir insistindo em soluções populistas, passageiras, de curto prazo e que bagunçam ainda mais o setor?