Nesta sexta-feira (5) nossa Constituição faz 30 anos. “A Constituição não cabe no PIB” é um lugar comum em nosso debate. Haveria nela um excesso de direitos, levando a um Estado gigante que não cabe na nossa economia. Não é verdade. Ela tem vários dispositivos liberais que são desobedecidos. Se fossem cumpridos, não estaríamos nesse buraco.
A Previdência é o caso mais conhecido de aumento de gastos com a Constituição. Mas ela possui também mandamentos claros para controle da despesa. Destacamos 3.
1. É proibido criar, aumentar ou estender benefício da Seguridade Social sem dizer como pagar
Pode parecer surpreendente para o leitor que nossa Constituição proíba aumentos, novos benefícios ou extensão de benefícios sem que se apresente uma fonte para financiá-los.
Isso não impede o Judiciário de exercer toda sua criatividade para aumentar a despesa mesmo sem previsão legal. São exemplos a reaposentadoria que permitia que alguns se aposentassem duas vezes (“desaposentadoria”) e o aumento de 25% para aposentados que precisam de ajuda de terceiros – criação novíssima do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em agosto, o tribunal estendeu este adicional a partir dos aposentados para invalidez. Não disse como pagar: serão R$ 4 bilhões a mais por ano (quase 2 milhões de famílias no Bolsa Família). A conta é da Instituição Fiscal Independente (IFI).
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Também não impede o Legislativo e o Executivo. No âmbito da pauta-bomba que desestabilizou o governo Dilma Rousseff pelo lado fiscal, permitiu-se que milhares de segurados pudessem se aposentar sem o fator previdenciário. Já foram R$ 2 bilhões de gasto até agora. Ainda que a lei seja revogada, até que deixem de existir, os benefícios já concedidos nos custarão R$ 55 bilhões – segundo o Ipea. Ninguém foi ao STF pedir a inconstitucionalidade.
Todas essas criações, ainda que fossem meritórias, descumprem uma ordem da Constituição. A preocupação do texto constitucional tem um motivo: benefícios da Seguridade têm um caráter continuado. Ao contrário, por exemplo, de uma obra pública que dura alguns anos, eles podem durar por décadas. Quando essa despesa sobe sem uma receita para pagá-la, o desequilíbrio nas finanças públicas será permanente.
2. A Previdência tem que ser equilibrada, no curto e no longo prazo
Os déficits dos regimes previdenciários são de centenas de bilhões, e eles estão em toda parte. No regime geral operado pelo INSS – tanto na parte urbana quanto na parte rural. No regime dos servidores (civis) da União. No regime dos militares. Nos regimes estaduais.
Só que emendas à Constituição em 1998 e 2003 exigem que os regimes “observem critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”. O equilíbrio financeiro implicaria a ausência dos déficits anunciados ano após ano. O equilíbrio atuarial se refere aos déficits do futuro, estimados em R$ 15 trilhões até 2060 pelo Tesouro Nacional.
Veja que os exemplos anteriores do Judiciário descumprem também essas ordens. Pior: o Judiciário brasileiro também tem o hábito de brecar mudanças aprovadas pelos demais poderes no sentido de garantir este equilíbrio.
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Foi assim quando o ministro Ricardo Lewandowski suspendeu medida provisória aumentando a contribuição dos servidores federais, uma tímida mudança no sentido de diminuir o desequilíbrio financeiro de cerca de R$ 40 bilhões. Ironicamente, a decisão foi endossada pela Procuradoria-Geral da República, a quem também deveria competir o papel de vigiar a Constituição.
Reajustes dos servidores são outro tipo de medida a desrespeitar esta regra. Como os aposentados e pensionistas também têm direito a aumentos quando se reajustam os salários dos servidores da ativa, os reajustes têm efeito no déficit. Não impede o Judiciário de propor aumentar o teto dos salários.
Perceba o leitor que uma reforma da Previdência, embora seja sempre colocada por grupos de interesse como “inconstitucional”, ao contrário, vai justamente defender a previsão de equilíbrio exigida pela nossa Carta.
O mandamento da Constituição tem um bom motivo: como a Previdência consome boa parte dos recursos do orçamento, federal ou estadual, seu desequilíbrio ameaça diversas políticas públicas e investimentos preconizados pela própria Constituição.
3. O governo pode se endividar, mas só se for para investir
No mesmo artigo da Constituição usado para o impeachment de Dilma, há uma regra especial: a Regra de Ouro. Ela é uma proteção às futuras gerações. Permite que a geração atual contraia dívidas, mas somente se deixar um legado.
Simplificadamente, podemos nos endividar para construir rodovias, aeroportos, hospitais. Não podemos nos endividar para pagar salários ou aposentadorias. Essas são despesas que não deixam uma contrapartida para a geração que pagará a dívida.
A partir de 2019, o Brasil vai deixar de cumprir a Regra de Ouro – tamanha a desproporção entre despesas correntes e arrecadação. Segundo a IFI, o descumprimento pode durar até 2025, chegando a mais de R$ 110 bilhões em 2021!
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O que fazer para a Regra ser cumprida? Há dois caminhos, complementares: contenção de despesas e aumento de tributos. Se a regra fosse ser literalmente cumprida, deveríamos empreender um ajuste fiscal épico que está fora de cogitação, mas que iria ao encontro da Constituição.
Vale frisar que esta regra, como a regra listada no item 1, são originais do texto de 1988. Assim, embora a visão de uma Constituição gastadora tenha prevalecido, o fato é que seu texto foi sim desenhado para caber nas possibilidades de financiamento da sociedade.
Exemplos de iniciativas contrárias à Regra de Ouro são abundantes: quase todos os programas dos presidenciáveis e as próprias iniciativas do Ministério Público e do Supremo de elevar os próprios salários.
Imagine que um candidato ou economista que propusesse zerar o déficit atuarial da Previdência ou promover um vigoroso ajuste fiscal seria rotulado de “neoliberal”. O rótulo então se aplica a previsões essenciais da nossa Constituição aniversariante – em geral com o intuito de proteger gerações que ainda não podem votar. Quem vai fazê-la ser cumprida?
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