“Ciro Gomes se compromete com a Auditoria Cidadã da Dívida”, anunciou a página da entidade coordenada pela servidora aposentada Maria Lucia Fattorelli. Ano passado, o candidato também declarou: “Tem um compromisso formal meu, vou fazer com a Fattorelli a auditoria soberana da dívida”. Apesar do nome simpático, o movimento Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) é na prática contrário à aplicação de juros compostos na dívida. Com o governo deixando de pagar juros sobre juros, teríamos concretamente um calote.
Abusivos, ilegítimos, inconstitucionais. É essa visão da ACD acerca dos juros compostos – que lembra o riba do Islã. Ela decorre da chamada Lei da Usura (na verdade um decreto de Vargas de 33) e de uma súmula do Supremo, no governo Jango. O entendimento do STF sobre o “anatocismo” foi relaxado já nos anos 70.
Para a Auditoria, a maior parte da dívida pública seria indevida, o que liberaria uma enorme quantidade de dinheiro para políticas sociais. Na realidade, a ACD e Fattorelli são principalmente conhecidas pelo argumento de que cerca de 50% das despesas anuais do governo são gastas com a dívida. Por isso, sua auditoria permitiria que dinheiro dos impostos que vão hoje para os credores fosse usado em educação, saúde, etc.
O problema é que não é verdade. Para começo de conversa, a União está com déficits primários desde 2014: isso quer dizer que não usa dinheiro dos impostos para pagar a dívida. Pelo contrário, não consegue fechar suas contas com as despesas primárias (salários, aposentadorias, políticas públicas) e pega dinheiro emprestado no mercado para cobrir o rombo.
Os déficits primários ainda demorarão anos para serem revertidos (se a agenda de reformas for tocada). A dívida que vence é paga com a emissão de mais dívida – o que nos torna mais endividados. Na Gazeta o repórter Fernando Jasper desmistificou o argumento sobre a dívida, que aliás é auditada frequentemente pelo TCU.
Além de assumir o compromisso com a ACD e de fazer a auditoria “com a Fattorelli”, Ciro repetiu à exaustão que cerca de metade do orçamento vai para a dívida, deixando de financiar serviços para a população.
Efetivamente, se metade da arrecadação vai para a dívida – como insinuam o movimento da Auditoria e Ciro – a prescrição natural seria obviamente o calote. Por que um país com amplas carências sociais deveria fazer um gigantesco superávit primário de metade do orçamento? Os ganhos do calote parecem muito maiores que os custos. Mas o calote não é expressamente admitido nem pela Auditoria nem por Ciro. Por quê?
A tese é ridicularizada mesmo por economistas do PSOL (veja que Guilherme Boulos prefere apresentar como solução para o fiscal a tributação dos mais ricos). Afinal, se metade dos tributos fossem anualmente para o pagamento da dívida, ela já estaria quitada há muito tempo. Ao contrário, o calote da dívida de um país em nossa situação secaria a fonte que financia nosso déficit primário de mais de R$ 120 bilhões por ano.
Então qual a base deste argumento falacioso? É que as despesas com a dívida, como outras quaisquer, precisam de autorização do Congresso – e por isso formalmente integram sim o orçamento. Porém, se de fato é verdade que qualquer despesa deve constar do orçamento, incluindo a dívida paga com nova dívida (gerando a conta dos 50%), também é verdade que toda receita deve constar do orçamento. Então, se é verdade que metade das despesas do orçamento são de dívida, também é verdade que mais da metade das receitas são da própria dívida. A proporção é ainda maior, relembremos: estamos com déficits primários.
O compromisso de Ciro Gomes com a Auditoria e a repetição dos seus argumentos contrasta com outras manifestações do candidato, deixando dúvida sobre suas reais intenções. Em diferentes vídeos, o candidato aparece dizendo que responsabilidade é necessária, ressaltando quem são os credores da dívida: “estão aí a caderneta de poupança das pessoas, as das viúvas, FGTS dos trabalhadores”. Ciro diz que não se pode brincar com o assunto e que a dívida é sagrada: “nós devemos, nós temos que pagar”.
O candidato defende que contratos devem ser respeitados, salvo os fraudulentos, mas a incerteza reside no que seriam contratos ilegais. A Auditoria Cidadã não defende rasgar contratos: ao contrário, entende que os contratos é que estão fora da lei. Para Ciro, que tem “compromisso formal” com a Auditoria, juros compostos devem ser vedados?
É tranquilizador que o candidato já tenha dito que a auditoria seria somente para dar luz e transparência ao assunto e esclarecer a sociedade. Respeitar os contratos seria uma imposição do Estado Democrático de Direito, e, eventuais fraudes, assuntos da Polícia Federal. Quem o japonês da Federal levaria por cobrar juros sobre juros?
Nas últimas semanas, Ciro foi errático. Na BandNews, reconheceu que não estamos pagando “nenhum centavo” da dívida, por conta dos déficits primários. A virada era consoante com o plano anunciado de zerar o déficit primário em 2 anos (o que não faz sentido para quem ache que 50% dos impostos vão para a dívida).
Só que apenas alguns dias depois, na sabatina da GloboNews, regrediu. Interpelado pelos jornalistas, negou o calote, mas defendeu que o crescimento da dívida é explicado “fundamentalmente pela estupidez do Banco Central de incorporar juros sobre juros”. E atacou o próprio conceito de déficit primário.
O vaivém ao terraplanismo fiscal não surpreende. Nos últimos meses, Ciro deu declarações contraditórias também sobre outros temas, da reforma da Previdência ao pré-sal. Nesse ponto, talvez o fez por estar ciente de que a tese é popular com certa esquerda e em segmentos que poderiam apoiá-lo (como nas universidades e entre servidores públicos, onde a ACD nasceu). Recentemente, até um juiz caiu no conto da auditoria e obrigou o Congresso a fazê-la.
Seja porque demandam uma narrativa para defender seus interesses ou porque acreditam ingenuamente que ninguém pensou até hoje em conferir os pagamentos da dívida, o fato é que esta lenda urbana tem muitos grupos a defendê-la. O candidato pode ter investido nela para se viabilizar à esquerda diante da indefinição sobre Lula e do frágil arco de alianças partidárias que possui.
A maior ameaça da conversa de Ciro sobre a dívida pode ser “só” o risco de estelionato eleitoral – iludindo os que querem negar o ajuste fiscal e acreditar no pote de ouro prometido pela auditoria. Mas o que é um “compromisso formal” de auditar a dívida com uma organização que rejeita os juros compostos? Como observou um amigo, enquanto candidatos normalmente usam as eleições para fazer promessas e parecer melhor do que serão, Ciro parece fazer o contrário: estaria ele prometendo ser pior do que seria?
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