Esta é a última de uma série de 3 colunas rebatendo o documento e o vídeo 44 coisas que você precisa saber sobre a reforma da Previdência, do engenheiro Eduardo Moreira. Eduardo tem viralizado nas redes sociais como uma personagem incomum: bem-sucedido no mercado financeiro, oferece cursos de educação financeira ao mesmo tempo em que interage com presidenciáveis de esquerda como Ciro Gomes, Fernando Haddad e Guilherme Boulos. É ferrenho opositor da reforma da Previdência, com vídeos de grande alcance nas redes.
Os dois primeiros textos, em que indico concordâncias com Edu, divergências e denuncio erros factuais, são estes: Os 44 equívocos de Eduardo Moreira sobre a Previdência
Nesta coluna, trato principalmente da visão otimista de Moreira sobre o impacto que a formalização no mercado de trabalho pode ter na Previdência, e de sua visão sobre a capitalização.
27) A mudança demográfica poderia ser facilmente compensada pela maior formalidade, menor desemprego e atividade econômica mais robusta. Perceba que Moreira não nega o envelhecimento da população, mas entende que eventual crescimento da massa salarial poderia contrabalancear os efeitos de termos menos jovens e mais idosos.
As reflexões que se colocam são as seguintes: a Previdência depende mais do crescimento do PIB do que o crescimento do PIB depende da reforma da Previdência? Como promover “facilmente” o crescimento diante de menos investimento público, maior carga tributária e maior juros – consequências de não reformar? A recuperação da economia não é um botão que simplesmente apertamos.
Na lógica de uma casa, seria como um marido endividado justificar que seus gastos não são um problema porque tudo vai ficar bem se de repente ele virar rico.
Ademais, não há impeditivo para se desfazer a reforma, caso a economia crescesse e gerasse vultuosos superávits na Previdência. Essa realidade hoje é uma quimera, mas, caso ocorresse, bastaria uma simples medida provisória para conceder aumentos para todos os benefícios.
Ao contrário de uma reforma, a contrarreforma não encontraria dificuldades políticas. Se sobrar recursos com a reforma, bastaria afrouxá-la.
28) O crescimento econômico resolveria o déficit. Ainda em relação ao último argumento, é importante perceber que a contribuição para a Previdência gera uma retribuição dela.
Um desempregado que ganha emprego de fato aumenta a arrecadação, porque sobre seu salário incide contribuição. Isso ajuda o déficit financeiro, corrente. Mas essa contribuição vai gerar benefícios no futuro, prejudicando o déficit atuarial. O desempregado passa a contar tempo para aposentadoria, pode deixar pensão por morte e se encontraria apto para auxílio-doença, auxílio-reclusão, auxílio-acidente, aposentadoria por invalidez, etc.
Salários maiores também ajudam a arrecadação em curto prazo, mas resultam em benefícios maiores depois, afetando o desequilíbrio atuarial.
A exceção é o caso de salários acima do teto do INSS, em que incide contribuição (do empregador) que não reverte em benefícios (pois se sujeitam ao teto). Ou um crescimento econômico infinito.
Saindo do déficit atuarial da Previdência e indo para o déficit atuarial da Seguridade, há ganho com a formalização por conta do BPC – que pode ser recebido sem contribuições e pode pagar benefício de mesmo valor e na mesma idade que aposentadorias contributivas.
Mas, em geral, diante de um sistema com regras desequilibradas, para muitos segurados os ganhos de arrecadação em curto prazo serão mais do que compensadas pelo aumento da despesa depois. Vale a analogia de “colocar mais lenha na fogueira”.
29) A reforma vai aumentar o déficit porque incentiva a informalidade. Para Eduardo, a reforma tornaria inviável a aposentadoria, desestimulando relações formais de trabalho. Não valeria a pena contribuir. Haveria menos contribuições e o déficit cresceria.
Ironicamente, o raciocínio vai ao encontro de uma das premissas do governo em uma das mudanças mais criticadas por Moreira: a do BPC. A lógica implícita é que a carteira assinada é uma escolha do segurado, que deixaria de buscá-la se é possível conseguir uma “aposentadoria” igual como formal ou informal. O contra-argumento da oposição é tipicamente o de que a carteira assinada raramente decorre de uma opção do trabalhador, e sim de diversos outros fatores.
Tanto a lógica de Edu quanto a do governo ignoram também o grande leque de benefícios – previdenciários e trabalhistas – disponíveis para os trabalhadores formais além da aposentadoria.
Ademais, no caso do raciocínio de Moreira, cabe mais uma vez refletir sobre os limites da ideia. O governo deveria então tornar mais fácil o acesso à aposentadoria do que é hoje? Não faria assim com que mais pessoas buscassem a formalização, aumentando a arrecadação e diminuindo o déficit? Qual o limite a esta lógica?
30) A capitalização nunca foi feita em países desenvolvidos. É difícil de entender de onde Eduardo Moreira tirou essa. Dezenas de países ricos possuem alguma forma de capitalização em suas previdências.
Apenas entre os ricos do G-20, há capitalização de recursos nos Estados Unidos, na França, no Japão e no Reino Unido. Exceções conhecidas são Alemanha e Itália.
Talvez Eduardo se refira à capitalização pura, mas aí estaria esquecendo, por exemplo, da Austrália. E nem a proposta do governo é de capitalização pura. Há previsão expressa de que o modelo não substituirá o Regime Geral e de que haverá um pilar solidário de um salário mínimo. Afinal, com um déficit atuarial de R$ 15 trilhões até 2060, não há espaço fiscal – mesmo com a reforma – para uma migração total para capitalização.
(O leitor pode se interessar pela coluna Não, a reforma de Bolsonaro não é igual à de Pinochet).
31) Após a implementação da capitalização no Chile, a taxa de reposição hoje seria de 15%, e de 4% para os pobres. O Chile de fato é conhecido pela baixa taxa de reposição (aposentadoria em relação ao salário, isto é, a parcela do salário reposta pela aposentadoria). Mas a evidência é de reposições bem maiores que as apontadas por Eduardo, ao redor de 30%.
A fonte de Eduardo é um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que por sua vez remete ao documento chileno “Informe Final – Comisión Presidencial Pensiones”. Em sua página 88 encontra-se a informação de Eduardo, mas há dois enganos: i) ela não se refere à reposição atual, mas sim à estimativa de uma reposição futura nas próximas décadas e, principalmente, ii) ela ignora a parcela solidária do “Aporte Provisional Solidario (APS)”.
Assim, a mesma página mostra que a reposição média, com APS, seria de 37,2%, e 34,7% para os mais pobres (quase 10 vezes mais do que o dado de Eduardo).
32) O regime de capitalização não contemplaria contribuição do empregador em grande parte dos países. A afirmação não procede. Para o G-20 e a América do Sul, identifiquei ausência de contribuição patronal apenas no Peru.
De fato, o ministro Paulo Guedes manifestou diversas vezes a intenção de desonerar a folha de pagamentos, muito embora a PEC da reforma deixe essa decisão para a lei futura que implementar a capitalização.
33) A contribuição patronal seria um dos principais elementos redistributivos da Previdência pública. Aqui cabe a ressalva de que eventual ausência de contribuição patronal não tem só desvantagens. Tem como vantagens o custo menor para o emprego formal (o próprio Eduardo lembra os altos índices de desemprego e informalidade no Brasil) e um salário maior para o empregado (especialmente no caso dos que ganham mais, onde a incidência efetiva da tributação tende a ser maior).
A tributação da folha no Brasil é uma das maiores do mundo, afeta o emprego formal e os salários: é difícil considerá-la um elemento redistributivo tão positivo.
34) A capitalização violaria a Declaração dos Direitos Humanos. Isso porque a Declaração prescreve o direito a um padrão de vida na velhice capaz de assegurar saúde e bem-estar.
É preciso ressaltar que a proposta garante um salário mínimo mesmo para quem não conseguir poupar o suficiente para recebê-lo. Assim, mantém-se uma característica atual fundamental: a alta taxa de reposição, já que 2/3 dos beneficiários do INSS recebem o salário mínimo (o que implica taxa de reposição de 100% ou até mais, como vimos na coluna).
O próprio documento da OIT apresentado por Eduardo Moreira, crítico da capitalização, salienta que convenções do órgão defendem reposição de pelo menos 40% ou 45%, após 30 anos de contribuição. O Brasil garante e continuará garantindo reposições muito maiores com tempo de contribuição muito menores.
A preocupação com a baixa taxa de reposição ocorrida no Chile é legítima, mas é satisfeita pela garantia do salário mínimo na PEC – solenemente ignorada por Eduardo e outros críticos. O fundamental é perceber que o piso de aposentadoria não está sendo rebaixado.
35) OIT contrária à Previdência. Citada ao menos duas vezes no texto, a OIT não é contrária à capitalização. Nos documentos citados – que viralizaram nas últimas semanas entre servidores públicos – há a defesa de um sistema multipilares.
Como vimos no item anterior, a proposta mantém para a maioria da população futura atendida pela capitalização um pilar solidário, além de não substituir o regime geral. Não há resistência clara da OIT a um modelo como esse, e sim a de uma capitalização pura. No modelo de pilares da OIT, é admitido um pilar de capitalização obrigatória.
36) O Prêmio Nobel Joseph Stiglitz seria contrário à capitalização. Citado no texto, Stiglitz é na verdade autor de um modelo que embasa uma das propostas de capitalização presentes no debate brasileiro (a do professor Hélio Zylberstajn, da USP).
Mais uma vez é preciso diferenciar a crítica a um modelo puro, como que era o do Chile no início, da de modelos que diversificam os riscos de financiamento – como parece ser o caso da capitalização brasileira pelos limites dados na PEC, regulamentada somente em lei futura.
37) A capitalização aumentaria desigualdades. O raciocínio aqui é simples: como cada um recebe de acordo com o que poupou, eliminam-se os subsídios cruzados do sistema – favorecendo desigualdades.
É fácil vislumbrar o problema do argumento: Eduardo entende que os subsídios cruzados do atual sistema estão sempre reduzindo desigualdades.
Mas os subsídios cruzados do atual sistema com característica progressiva são os que afetam os trabalhadores de menor renda, que contarão com o piso solidário de um salário mínimo.
Quais subsídios cruzados restariam? Essencialmente três: mulheres (que Eduardo enfatiza), professores e servidores.
No caso destes últimos dois, e especialmente no caso dos servidores, a capitalização estaria eliminando uma fonte de concentração de renda (em que os mais pobres são tributados para pagar benefícios dos mais ricos), e não o contrário.
Não à toa, houve resistência de sindicatos do setor à lei sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff criando a previdência complementar do servidor (Funpresp), limitando aposentadoria de novos servidores ao teto do INSS. Nos termos do economista José Márcio Camargo, a previdência do funcionalismo é “o maior programa de transferência de renda de pobre para rico do mundo”. Esta transferência só existe pelas regras do regime de repartição.
38) O gasto previdenciário cresceria 10% ao ano. A despesa previdenciária cresce bastante acima da inflação, mas bem abaixo dos 10% ao ano apontado por Eduardo Moreira para os últimos anos. Entre os benefícios previdenciários de duração continuada, a taxa variou de 4% para benefícios como a pensão por morte a 8% na aposentadoria por idade urbana nesta década.
O dado de crescimento anual de 10% é tão alienígena que desafia várias das alegações de Edu relativizando o problema previdenciário. Como a reforma pode ser tão desimportante se Moreira entende que o gasto cresce muito mais do que de fato ocorre?
39) A reforma da Previdência não liberaria recursos para outras áreas, como saúde. A lógica de Eduardo é difícil de entender aqui. Ele alega que, por conta do Teto de Gastos e do crescimento da despesa previdenciária (que compreende ser de 10% ao ano), não haveria ganho para outras áreas. Por quê? Porque a economia gerada com a reforma seria pequena!
“A economia proposta não parece ser suficiente para fazer essas despesas crescerem abaixo da inflação, a ponto de permitirem realocação de despesas para outras iniciativas”.
Fica evidente o afã de criticar a proposta, por perspectivas completamente excludentes: no texto e em outras manifestações, Eduardo criticou o rigor da reforma, que agora seria fraco.
O outro problema com o argumento é fácil de perceber: se Eduardo acha que nem com reforma haverá sobra de recursos, que dirá sem reforma? Se a despesa cresce tanto e é obrigatória, o que acontecerá em áreas como a saúde sem reforma? É claro que o cenário com reforma é de mais recursos para outras áreas do orçamento do que o cenário sem reforma (independentemente do Teto de Gastos que, aliás, é global, e não por despesa).
40) O Teto de Gastos não afetaria a despesa com juros. O Teto é destinado exatamente a controlar o endividamento e os gastos com a dívida. Ele de fato não é um calote, e não restringe diretamente os pagamentos. Mas age sobre eles ao limitar o endividamento primário e os seus juros (custo que é maior diante de uma trajetória mais arriscada, como a que seria sem o teto).
O gráfico do economista Vitor Wilher é o terror dessa narrativa, pois mostra queda substancial na despesa com juros após o impeachment de Dilma e o Teto de Gastos.
A pior coisa para os rentistas é responsabilidade fiscal.
41) O pagamento de aposentadorias seria bom para a economia, o da dívida seria ruim. Usando a lógica de multiplicadores, mais cara à heterodoxia, Eduardo argumenta que o gasto previdenciário é positivo para economia, em contraste com o gasto com a dívida (que, por exemplo, não impulsionaria o consumo). A reforma “inibiria” o crescimento da economia ao drenar recursos para reduzir a dívida pública.
Novamente, é útil levar a lógica aos extremos. Por que não aumentar o gasto previdenciário e acabar com a rolagem da dívida? Isso não seria positivo para a economia? Ou o calote é negativo, até porque fecha a torneira que financia os déficits primários que pagam a própria Previdência? A análise unidimensional dos multiplicadores é alheia a este tipo de complexidade.
42) A reforma desaceleraria a economia do país porque concentra renda, como mostra estudo do FMI. Eduardo lembra que segundo estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI), ganhos de renda dos mais pobres contribuem mais para o crescimento da economia em cinco anos (0,38%) do que ganhos de renda dos mais ricos (0,08%).
O estudo vai ao sentido contrário do que argumenta Eduardo! Por quê? Porque os mais ricos, no estudo, são os 20% mais ricos, e os mais pobres, os 20% mais pobres. Ora, a reforma da Previdência é concentrada justamente nos 20% mais ricos da população (e Eduardo questiona exatamente o governo por se referir a este contingente como “rico”).
Como já apontamos na coluna, somente 11% dos recursos para a previdência urbana e do funcionalismo vai a este grupo dos mais pobres, enquanto 40% ficam com os mais ricos! O estudo citado por Moreira gera conclusão em sentido oposto à dele.
Assim, o argumento só seria válido para o BPC e para a previdência rural (menos, já que 17% dos recursos vão para o grupo que Moreira chama de mais ricos).
43) O êxodo rural causaria pobreza, e será piorado com a reforma. O tema do êxodo rural é recorrente no texto: as regras da previdência rural atenuariam essa migração, vista como negativa por Eduardo, pois “ampliaria a pobreza”.
Este argumento elitista, tipicamente externado pelas classes mais altas do meio urbano incomodadas com o crescimento da periferia, idealiza as condições de vida no campo. Ele contradiz as próprias críticas de Eduardo à reforma na área rural – que eu concordo. Se as condições de vida no campo são ruins e penosas, dando ensejo à aposentadoria especial, porque é negativo que as pessoas migrem para as cidades?
A decisão de migração está condicionada à busca por melhores condições de vida, e não o contrário. A urbanização foi um dos fenômenos mais positivos para a economia e a sociedade brasileira nas últimas décadas.
44) O aumento do salário mínimo impulsiona o PIB. Como vimos, o salário mínimo não é tão importante na discussão das aposentadorias, já que a proposta de reforma mantém a vinculação das aposentadorias com o salário mínimo.
Todavia, responder a este argumento de Eduardo antecipa a próxima coluna, que será sobre o salário mínimo. A valorização do salário mínimo é tida como uma política vencedora, mas que até por isso já exauriu seus efeitos.
O salário mínimo, ao afetar basicamente benefícios previdenciários, não é considerado o melhor gasto no combate à pobreza, perdendo para outras despesas – notadamente o Bolsa Família. O Bolsa tem inclusive multiplicador maior, isto é, este argumento se insere na própria lógica de Eduardo.
Ademais, há evidência de efeitos negativos do aumento do mínimo no mercado de trabalho, em prejuízo do emprego formal. Trataremos nos próximos dias deste tema, aproveitando o gancho do anúncio de reajuste real zero para 2020 no projeto de Bolsonaro para a LDO. Até lá.