Além do desafio da sustentabilidade das finanças públicas diante do envelhecimento veloz da população brasileira, é essencial discutir a Previdência pela ótica de que famílias ela alcança. Apesar de ocupar boa parte do orçamento, ela tem dificuldade de chegar aos mais pobres. Porém eles são frequentemente usados como escudo na reforma da Previdência: pelos mais ricos que não querem mudanças.
Embora seja comumente considerada um poderoso mecanismo de redistribuição de renda, a Previdência Social falha em beneficiar as famílias mais pobres do Brasil. Assim, quando se alega que a Previdência é o maior mecanismo de transferência de renda do país, isso reflete principalmente o seu tamanho, e não a sua focalização.
A intuição que explica o baixo alcance nos mais pobres é simples: a Previdência é um seguro social contra a perda da capacidade de trabalho. Portanto, é destinada 1) a quem trabalha; 2) a quem trabalha com carteira assinada. Ela não foi desenhada para alcançar grupos mais pobres, com precária inserção no mercado de trabalho formal: trabalhadores por muito tempo informais, desempregados ou pessoas fora da força de trabalho.
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Este papel é o da Assistência Social, outro pé da Seguridade Social. Mesmo assim, a Seguridade Social, quando cobre famílias mais pobres e de inserção precária no mercado de trabalho, privilegia famílias com pessoas mais velhas. É o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), da aposentadoria rural e da aposentadoria por idade urbana, que de fato alcançam trabalhadores de menor potencial contributivo, mas transferindo renda a partir de idades mais avançadas.
Não apenas a cobertura da Seguridade a famílias com pessoas mais velhas é maior do que a cobertura a famílias com pessoas mais jovens, como os valores das transferências são maiores: tanto BPC quanto aposentadorias pagam no mínimo um salário mínimo, valor muito maior, por exemplo, do que a média do Bolsa Família (R$ 180).
Nos últimos anos, esta vinculação ao salário mínimo também garantiu aumentos reais (acima da inflação) sempre que o salário mínimo aumentou, enquanto transferências como a Bolsa Família nem sequer são indexadas à inflação.
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Ademais, é ponto importante nesta discussão o sabido fato de as transferências previdenciárias ocuparem grande e crescente espaço no orçamento, reduzindo a disponibilidade de recursos de outras políticas públicas que atendem os mais pobres. Por exemplo, o próprio Bolsa Família, a saúde, o saneamento básico, a educação.
Despesas primárias da União – 2018
Este ponto é especialmente importante na discussão de benefícios de maior valor destinados justamente às famílias com maior capacidade de contribuição e mais bem posicionadas na distribuição de renda. É o caso da aposentadoria por tempo de contribuição no INSS ou das aposentadorias e pensões de servidores públicos e militares.
Estes argumentos serão mais bem ilustrados com os dados apresentados a seguir. Este texto é a primeira parte de nossa discussão nesta Gazeta sobre Previdência e pobreza, e é baseada no meu livro: Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode Esperar?, assinado com Paulo Tafner.
As famílias mais pobres recebem o que da Previdência?
No quintil mais pobre da população – isto é, os 20% mais pobres do Brasil – é onde se concentram quase 70% dos recursos do Bolsa Família, segundo o Banco Mundial. No caso do BPC, também formalmente parte da Assistência, mas destinado a idosos e pessoas com deficiências pobres, são 56% dos recursos. A penetração é muito menor para os benefícios materialmente previdenciários: apenas 38% das transferências da aposentadoria rural chegam neste quintil mais pobre e somente 11% das transferências para as aposentadorias urbanas do Regime Geral e do regime dos servidores (RPPS).
Note que neste último caso, como há contribuição direta dos segurados (ao contrário de Bolsa Família, BPC, e rural), entende-se por transferências o valor do pagamento subtraído das contribuições.
O gráfico a seguir apresenta estes dados. Eles têm como fonte o Banco Mundial, a partir do documento Um Ajuste Justo, uma revisão das despesas encomendada pelo governo Dilma Rousseff. Os resultados levam em conta a renda domiciliar per capita a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE.
Incidência de recursos no quintil mais pobre (20% mais pobres) – 2015
É conveniente continuar analisando a penetração destes pagamentos nos outros quatro quintis da distribuição de renda (isto é, os 80% menos pobres, entre os quais os mais ricos).
Fazemos esta análise para os beneficiários em duas situações: 1) se não recebessem o benefício e; 2) com o recebimento do benefício.
Tanto o BPC quanto a aposentadoria rural são menos bem focalizados nos mais pobres do que o Bolsa Família (pré-transferência). Em especial, após o recebimento, eles têm um pico de incidência apenas no grupo intermediário da distribuição renda: no terceiro quintil mais pobre (ou terceiro quintil mais rico).
Isso não ocorre com o Bolsa Família: BPC e aposentadoria rural são vinculados ao salário mínimo, e o Bolsa Família não. Assim, boa parte dos beneficiários do BPC e da aposentadoria rural se encontra entre os 60% mais ricos do país – o que se explica menos pela focalização (posição antes do recebimento) e mais pelo valor do benefício (posição depois do recebimento).
Pode ser surpreendente para alguns leitores que um benefício assistencial destinado ao idoso e à pessoa com deficiência pobre (BPC) e a aposentadoria rural, em tese destinada a ex-trabalhadores do campo, coloquem tantas pessoas no meio da distribuição de renda.
Já os subsídios do Estado às aposentadorias (RGPS e RPPS) têm pico pós-transferência também no grupo intermediário e ainda no quintil mais rico da população, ou seja, os 20% mais ricos. É provável que um pico se relacione ao RPGS e o outro ao RPPS.
Os gráficos a seguir apresentam a incidências nestes 5 quintis por benefício. Para facilitar a leitura fazemos assumidamente uma simplificação a partir da posição relativa na distribuição de renda de cada quintil: chamamos os 5 quintis de “mais pobres”, “pobres”, “intermediário”, “ricos” e “mais ricos”.
Incidência nos quintis da distribuição de renda – 2015 – Bolsa Família
Pré-transferência
Pós-transferência
Perceba que o Bolsa Família, um benefício relativamente bem focalizado, tem a maioria de seus recursos destinados às famílias mais pobres e pequenas parcelas destinadas às famílias dos 3 grupos mais bem posicionados na distribuição de renda (12%) – mesmo depois do recebimento. Não é o que acontece com as demais transferências:
Incidência nos quintis da distribuição de renda – 2015 – BPC
Pré-transferência
Pós-transferência
Incidência nos quintis da distribuição de renda – 2015 – Aposentadoria rural
Pré-transferência
Pós-transferência
Incidência nos quintis da distribuição de renda – 2015 – Subsídios às aposentadorias do RGPS e RPPS
Pré-transferência
Pós-transferência
No caso do BPC, 61% dos recursos são destinados aos três quintis mais ricos da população (lembre-se: o percentual é de 12% no Bolsa Família). Este valor sobe para 77% no caso da aposentadoria rural e 88% no caso dos subsídios às aposentadorias urbanas.
Todos estes benefícios de natureza previdenciária têm mais beneficiários entre os mais ricos do que entre os mais pobres.
A respeito especificamente dos subsídios às aposentadorias do RGPS e RPPS, afirma o Banco Mundial no Um Ajuste Justo (grifos nossos), quando o sistema se torna deficitário, ocorre uma transferência da sociedade em geral aos mais ricos.
Consequentemente, a reforma do RGPS e do RPPS não teria nenhum impacto sobre os mais pobres (e, na verdade, poderia liberar recursos para aumentar as alocações de programas voltados aos mais pobres, como o Bolsa Família).
Em uma próxima coluna, avançaremos nesse assunto com a principal resposta para essas distorções: a pobreza no Brasil se concentra nas famílias jovens.