Há cerca de cinco anos a Confederação Nacional do Comércio (CNC) inaugurou em Brasília o Centro Empresarial CNC. São 72 andares distribuídos em quatro torres, com vista para o Lago Paranoá e a Esplanada dos Ministérios, mais de duas mil vagas de garagem, e um total de 140 mil metros quadrados. Nenhuma empresa tem sede no centro empresarial da Confederação do Comércio*. Ele é todo ocupado por órgãos públicos. No coração da capital, é um monumento à ineficiência e sua história sintetiza o teto de gastos. Vejamos o porquê.
Três órgãos passaram a ocupar inicialmente o prédio, cada um com uma torre inteira. Um deles é a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), cuja missão é “promover a justiça fiscal e assegurar recursos à sociedade com integridade e respeito ao cidadão” Outros dois órgãos que funcionam no centro CNC tem ampla autonomia e status de representantes dos mais pobres: o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU).
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Recentemente, uma das quatro torres, que permanecia desocupada, recebeu novo inquilino que alugou vários de seus andares: a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimento, a Apex. Focamos neste texto nos contratos dos outros três órgãos que ocupam o complexo há vários anos.
É perfeitamente possível que o prédio fosse ocupado por oferecer uma boa estrutura e baixo custo. Mas algo chama muita atenção na curta história de ocupação do imóvel: a ausência de empresas no centro empresarial, que parecem não conseguir competir com o poderio econômico dos órgãos; a renegociação dos contratos diante do ajuste fiscal e do Teto de Gastos, sugerindo haver muita gordura nos aluguéis; e a dispensa de licitação para fechar os contratos.
A Procuradoria fechou o contrato inicial por quase R$ 100 milhões, mais de R$ 1,6 milhão mensais, para ocupar uma torre de 2015 até o fim deste ano. Não havia outro imóvel concorrente. O órgão exigiu condições que geraram a exclusão de vários outros ofertantes interessados no aluguel. Com a missão de assegurar recursos à sociedade, criou um monopólio para si própria, o que naturalmente aumenta o custo.
As exigências para desclassificar os demais prédios? A principal foi a necessidade de salas isoladas para os procuradores, já que na instalação anterior chegava-se a ter quatro procuradores por sala. A natureza do trabalho, intelectual, exigiria silêncio. A maior quantidade de salas, no melhor juridiquês, acabaria “propiciando qualidade física e mental na condução do seu labor”.
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A PGFN é um órgão de excelência e é claro que o silêncio é melhor para o trabalho intelectual. Mas isso deve ser buscado a qualquer custo? Em um Estado com amplas carências de infraestrutura, em que alunos dividem salas apertadas e pacientes se aglomeram em hospitais, a exigência soa caprichosa. Não precisamos ir tão longe: dentro da própria Fazenda há muito trabalho intelectual sendo feito em salas compartilhadas, caso dos auditores da Receita ou dos analistas do Tesouro Nacional.
O monopólio do centro empresarial também surge de outras exigências comezinhas, como a preferência para que todas as salas tivessem janelas. A justificativa apontada foi econômica (economizar com energia elétrica), mas a conta não foi apresentada. Houve também a exclusão de competidores porque a Procuradoria precisava de muitos andares, já que suas 15 unidades temáticas não podem dividir os mesmo pavimentos. Assim, houve exigência específica contra “eventual englobamento de unidades distintas da PGFN em mesmo andar. Isso traria problemas de logística, no tocante ao compartilhamento de salas de reuniões (…)”.
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Já em 2016 a Procuradoria conseguiu reduzir o valor do aluguel. O centro empresarial deu descontos para o pagamento pontual e abriu mão das recomposições, com impacto de gordos 10% (foi a R$ 1.460.000 mensais).
Defensoria Pública e MP do Trabalho
No caso da Defensoria Pública da União (DPU), o contrato inicial por ano foi de R$ 26.280.540, o que dá mais de R$ 2 milhões por mês – também para uma torre. Com o passar dos anos, a Defensoria e o Ministério Público do Trabalho (MPT) também conseguiram reduzir o valor do aluguel, que em 2017 chegou a R$ 1.168.000 por mês – cerca de metade do valor contratado inicialmente.
No caso desses dois órgãos, as renegociações chamam atenção pela vigência do Teto de Gastos. Defensoria e MPT possuem tetos separados, o que estimula a eficiência do gasto: se quiser aumentar uma despesa, o órgão tem que cortar outra dentro do próprio orçamento.
É como se o aluguel tivesse ficado mais pesado para os órgãos no meio do contrato, porque a partir do Teto eles passaram a ser de fato responsáveis pelo próprio dinheiro. A contenção de desperdícios foi incentivada. Pode-se continuar gastando R$ 2 milhões mensais com aluguel de prédio corporativo, mas isso diminui a disponibilidade para outras despesas, inclusive aumentos salariais ou novos concursos.
A falta de razoabilidade pode ser visualizada no contraste da figura abaixo. O complexo tem “auditório integrado a um belo foyeur”, e a imagem mostra sua utilização com o Ministério Público do Trabalho realizando seminário sobre trabalho escravo.
Em que pese a crise que derrubou os preços de mercado dos imóveis, a história do centro empresarial mostra a beleza do teto de gastos e aponta para a gordura que havia nos contratos. Mesmo com os órgãos públicos pagando muito menos, ainda não foi vantajoso para o locador trocar de inquilinos e de fato abrigar empresas no centro empresarial. Por quê?
Ainda que troquem de prédios ao fim dos contratos, durante esse governo, o contribuinte gastou centenas de milhões de reais com a ocupação do complexo pelos órgãos desde 2015. Por baixo, foi dinheiro suficiente para manter por todo o período mais de 20 mil famílias no Bolsa Família.
O constrangimento sobre o deus Hermes
O constrangimento não é só do leitor: a própria Defensoria Pública publicou em seu site oficial um texto envergonhado sobre sua nova sede (a DPU foi recentemente a favor do indulto de Natal, porque faltam espaços nos presídios). O motivo: o empreendimento se reúne ao redor de uma estátua do deus Hermes, ao centro de um espelho d’água.
Só que Hermes é o deus grego do comércio, dos mercadores. Não ria, mas o seguinte trecho é retirado do site da DPU, e não há como não fechar a coluna sem ele:
“No entanto, a Defensoria Pública prefere fazer um recorte mais direcionado às atividades finalísticas da instituição e realizar uma hermenêutica mais social para a representatividade simbólica da estátua que recepciona os hipossuficientes que procuram diariamente a DPU.
Hermes na mitologia grega (mercúrio na mitologia romana) é filho de Zeus e por ser seu mensageiro é possuidor de vários atributos. (…) O defensor público possui missão semelhante à tarefa de Hermes: levar mensagens entre realidades diferentes, aparentemente distantes e com linguagens diferentes.
É assim, portanto, que o defensor público recebe os clamores das comunidades mais estigmatizadas socialmente – v.g., as comunidades dos presídios, das favelas (…) Sem o mensageiro, tais interesses restariam esquecidos e a legitimidade democrática do poder julgador seria inevitavelmente reduzida e a democracia seria mitigada.
O que é a Defensoria Pública senão uma mensageira dos vulneráveis e excluídos? (…) É assim, nesta hermenêutica defensorial, que atualmente Hermes recepciona os visitantes e assistidos da Defensoria Pública da União em sua nova sede.”
* Na internet, outros informativos reportam um número de andar por torre menor.
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