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Não, a reforma de Bolsonaro não é igual à de Pinochet

Crédito da foto: Mark Scott Johnson /Wikimedia Commons (Foto: )

A reforma da Previdência ganhou um novo espantalho. Ausente da proposta de Temer, a capitalização foi incluída lateralmente na de Bolsonaro. A Proposta de Emenda à Constituição do atual presidente não muda o regime atual para um de capitalização, mas prevê a possibilidade de lei fazer alguma transição no futuro. Nada parecido com o regime de Pinochet está sendo proposto ou tem chance de ser feito, mas tome exemplos de suicídios de velhinhos no Chile para criticar a proposta do governo.

A diferença entre Chile e Brasil na Previdência

O modelo adotado no passado pelo Chile era de fato radicalmente diferente do adotado no Brasil. O Brasil optou por um regime de repartição, em que os trabalhadores contribuem não para as suas próprias aposentadorias mas para pagar os benefícios dos aposentados e pensionistas existentes. Este modelo é mais pressionado pela transição demográfica (menos gente nascendo para financiar pessoas vivendo mais).

O Chile optou por um modelo de capitalização na direção contrária. Privilegiou-se a eficiência e não a redistribuição. Cada um poupa para sua própria aposentadoria, com a contribuição investida no mercado financeiro. O sistema possibilitou ao Chile taxas de poupança maiores, com consequências obviamente positivas sobre os juros e o investimento, como em infraestrutura.

Muitos explicam o alto nível de renda e de qualidade de vida chileno, em relação aos seus pares, pela capitalização. Por outro lado, o modelo recebeu muitas críticas e foi reformado em anos recentes: muitos chegam à terceira idade com benefícios baixíssimos.

A reposição média dos salários é de cerca de 30%, mesmo para os menores benefícios. No Brasil, que subsidia pesadamente as aposentadorias de menor valor, milhões de trabalhadores recebem mais do que 100% do que seu salário médio (porque recebem o salário mínimo corrente).

E o que o Chile tem a ver com a reforma de Bolsonaro? Na verdade, a proposta de Bolsonaro é essencialmente uma reforma paramétrica, isto é, uma reforma nos parâmetros no nosso regime de repartição. Por exemplo, idade mínima, tempo de contribuição, taxa de reposição dos benefícios. Ela não é uma reforma estrutural, transformando o regime de repartição no de capitalização.

Nem poderia: tal mudança é inviável.

Mudar para uma capitalização como a do Chile quebraria o Brasil

Ainda que se considere um sistema de capitalização mais eficiente ou sustentável, a sua adoção é muito mais simples no desenho inicial de um sistema. A migração de um regime de repartição já existente e deficitário é muito difícil.

Isso porque a capitalização não só não resolve o déficit, como o piora. Ela em si implica déficit: o chamado déficit de transição. A partir do momento em que as contribuições dos atuais trabalhadores são separadas para serem investidas (capitalização), corta-se a fonte de financiamento dos atuais aposentados e pensionistas.

Ou seja, as despesas dos atuais beneficiários do regime de repartição devem continuar sendo pagas, mas a receita foi embora. O déficit aumenta.

Somente a arrecadação do Regime Geral de Previdência Social, operado pelo INSS para os trabalhadores da iniciativa privada, é da ordem de R$ 400 bilhões por ano.

Por isso, mudar para um regime de capitalização puro aumentaria o déficit do governo em R$ 400 bilhões.

O déficit do Regime Geral já se aproxima de R$ 200 bilhões. O déficit primário do Tesouro estimado para 2019 é de R$ 100 bilhões.

Assim, uma hipotética mudança total para um regime de capitalização neste ano aumentaria o déficit do INSS em 3 vezes, e o déficit primário em 5 vezes.

Para os anos seguintes, o problema é pior, porque os déficits são crescentes. Até 2060, estima-se que somem R$ 7 trilhões no INSS. A reação do próprio mercado financeiro seria vigorosa, pois é evidente que uma migração impensada provocaria rapidamente a insolvência da dívida pública.

O foco da reforma são os parâmetros do regime, não sua estrutura

Dessa forma, o foco da reforma não é na capitalização, mas justamente em reduzir os desequilíbrios do atual modelo. Parâmetros como idade mínima, tempo de contribuição ou valor dos benefícios não têm nada a ver com capitalização.

Quer dizer, uma situação como a vivida por parte dos idosos do Chile não é motivo de preocupação.

Ainda que a proposta preveja que uma lei complementar instituirá um regime com capitalização obrigatória “para quem aderir”, o déficit de transição impede que uma ampla migração ocorra.

Assim, é mais provável uma transição suave como o modelo previdenciário de capitalização adotado pelo próprio Partido dos Trabalhadores (PT) para os servidores públicos. Ele é obrigatório somente para novos servidores, e somente sobre o que excede o teto do INSS. Foi previsto para lei complementar na reforma de FHC, previsão alterada para mera lei ordinária na reforma de Lula e definitivamente implantado por Dilma.

Por exemplo, na proposta de reforma de Armínio Fraga e Paulo Tafner, a capitalização só se aplicaria aos nascidos em 2014 e somente quando ganhassem acima de R$ 4 mil (e somente sobre os valores excedentes). Nada então mudaria para quem nasceu antes de 2014 ou, mesmos para os nascidos depois do 7 a 1, nada mudaria sobre os valores recebidos abaixo de R$ 4 mil.

O financiamento de benefícios até R$ 4 mil continuaria pelo sistema solidário, sem os riscos de mercado e de baixa poupança que poderiam provocar aposentadorias baixas para os mais pobres.  Garante-se assim também a própria solvência do Estado, que já tem de lidar com um déficit previdenciário gigantesco e não pode tacar mais lenha na fogueira.

No mesmo sentido é a proposta do professor Flávio Ataliba (UFC) e do economista Mauro Benevides Filho, deputado federal pelo PDT. A capitalização seria somente uma camada do benefício previdenciário. De fato, esse sistema conhecido como “multipilares”  tem sido mais adotado no mundo.

Capitalização obrigatória é comum, mas Chile não é modelo

Tanto a proposta de Armínio e Tafner quanto a de Ataliba e Benevides vão ao encontro de um modelo prescrito pelo Banco Mundial e existente em vários países. Haveria diversos “pilares” na previdência social.

Por exemplo, um menor, garantiria uma renda básica, às vezes universal e custeada pelo Estado. Um segundo pilar é financiado por regime de repartição, até rendas intermediárias. Um terceiro pilar é o de capitalização obrigatória, e um quarto o de capitalização facultativa (como a previdência complementar hoje no Brasil).

Por exemplo, um trabalhador muito pobre estaria resguardado pela renda básica. Um trabalhador de renda intermediária seria coberto pelo regime de repartição. Somente trabalhadores de mais alta renda estariam na capitalização, com parte de seus salários.

Assim, é estranha a nossa obsessão com o Chile neste debate. Embora pioneiro, o modelo chileno mais puro não é nenhum Santo Graal da capitalização na previdência.

Na América do Sul, há capitalização obrigatória na previdência também na Bolívia, Colômbia, Peru e Uruguai. Entre os países do G-20, as vinte maiores economias do mundo, existe na Arábia Saudita, China, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia. As exceções são Alemanha e Itália.

Exemplos puros como o do Chile são os de Austrália e México, vigorando na maioria dos países o sistema em pilares (ou camadas).

Na proposta de Bolsonaro, fica estabelecido que na lei futura que introduzir o regime de capitalização não se substituirá o Regime Geral, que haverá piso solidário de 1 salário mínimo e também concorrência na prestação do serviço. Estes últimos dois pontos em especial já tornariam o regime muito diferente daquele do Chile, caracterizado por muitos benefícios abaixo do salário mínimo e pela baixa competição na administração dos recursos.

Uma polêmica que reside na redação de Bolsonaro é que não se prevê a obrigatoriedade de contribuições do empregador, mas apenas sua possibilidade. Parte da explicação dos problemas chilenos se deveriam à poupança insuficiente por falta de contribuição das empresas.

Contudo, vale ressaltar que – especialmente para os maiores salários – a incidência da contribuição não se dá somente na empresa, ainda que ela seja a responsável por fazer o pagamento. Isto é, a obrigatoriedade da contribuição patronal reduz o salário líquido: não à toa tantos brasileiros de maior renda preferem a PJ do que as promessas da carteira assinada.

Criticando o Chile do alto da nossa pobreza

O governo Michelle Bachelet promoveu alterações importantes na previdência chilena, no sentido das críticas conhecidas ao modelo: mais solidariedade e melhor governança para as administradoras.

Contudo, peço licença ao leitor para nesta conclusão sair um pouco do propósito do texto (a comparação da reforma de Bolsonaro com a de Pinochet). Faço isso porque a fixação recente com o Chile em nosso debate previdenciário chama atenção, à medida que o país subidamente é um exemplo de fracasso.

Estamos falando de um país com PIB per capita 60% maior que o brasileiro! A trajetória dos dois países é impressionante, porque nos anos 80 o Brasil era o mais rico. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Chile já é equivalente ao de Portugal. O percentual de pessoas na pobreza é cerca de metade do brasileiro e um dos menores das Américas.

É claro que o êxito chileno não pode ser explicado somente por sua taxa de poupança maior. Mas é irônico que no momento que discutimos ajuda humanitária à Venezuela, estejamos discutindo também quão ruim seria o liberalismo do Chile – como se o modelo previdenciário chileno tenha sido só ônus e nenhum bônus.

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