Você acredita na trama para reviver a União Soviética na América Latina, anunciaria que uma colega deixaria de ser tetraplégica em minutos e vaticinaria a “cura gay” de um assumido homossexual diante de seus pares? Acha que a Maçonaria possui templos na entrada de cada cidade brasileira, que Brasília é réplica de uma antiga cidade egípcia e que o presidente da República é satanista? Se você sente um misto de vergonha alheia e repulsa pelas declarações do Cabo Daciolo – a nova sensação das eleições após o 1º debate – talvez queira conhecer o que o candidato fala de economia. Afinal, você não quer daciolar por aí certo?
O pastor é chegado em teorias da conspiração. Infelizmente, na discussão de política econômica, essas teorias ainda não são ridicularizadas como as outras do Cabo: ao contrário, encontram apoio nos extremos do espectro ideológico, com adeptos na esquerda e na direita.
Um único vídeo do YouTube passeia pelo pensamento econômico do candidato, com tudo que, no bordão de Cabo Daciolo, deveria tá repreendido.
1) “A Previdência é superavitária. Não acreditem quando falem que tem déficit na reforma (sic), não existe déficit na reforma. Eles deixam de calcular alguns tributos, algumas receitas, como o CSLL, que é a contribuição social líquida dos lucros (sic), o PIS, o Pasep, o Confins (sic), eu tô falando de uma perda de mais de R$ 200 bilhões. (…) Eu tô falando de superávit.”
O Cabo então entra em um computador e digita o endereço do site da Anfip, a associação de uma carreira extinta de auditores que foram incorporados pela Receita (e que são afetados pela reforma), célebre pela contabilidade alternativa. Ironicamente, a própria Anfip reconhece déficits da ordem R$ 60 bilhões na Seguridade Social tanto em 2016 e 2017.
Aliás, Seguridade não é igual à Previdência: a Seguridade é o conjunto Saúde, Assistência e Previdência. Esse já é um fato pouco discutido na apresentação da contabilidade alternativa, que normalmente subentende Previdência e Seguridade como sinônimas.
O Tribunal de Contas da União (TCU) não aceita a contabilidade do lobby dos servidores, e ratifica a contabilidade oficial: déficits gigantescos nos regimes previdenciários federais (R$ 270 bilhões em 2017) e também na Seguridade (quase R$ 300 bilhões). É a contabilidade não só do atual governo, mas de sucessivos governos do PT, aprovada pelo Congresso Nacional anualmente na LDO.
O Cabo Daciolo também menciona a DRU (Desvinculação de Receitas da União). Contrariamente à lenda urbana, a DRU não incide sobre as contribuições previdenciárias (art. 167 da Constituição o veda). Para o TCU, o impacto da DRU sobre a Previdência é nulo. Ela incide somente sobre contribuições sociais (da Seguridade, inclui Saúde e Assistência).
Ainda assim, o valor dela é 3 vezes menor do que o déficit da Seguridade. Como concluiu o próprio governo Dilma Rousseff, mesmo com a DRU a Seguridade Social é deficitária. Sua serventia é tão pequena que durante a reforma o governo admitiu extingui-la. Criada nos anos 1990, a DRU na realidade foi instrumento concebido para tirar recursos de Estados e Municípios, que recebem a arrecadação dos impostos da União, mas não das contribuições: 25 Estados e o DF pedem o dinheiro no STF.
Outro motivo importante para o déficit calculado pelo sindicato da Receita ser menor do que o reconhecido pelo TCU é a exclusão dos servidores públicos da conta. Assim, na metodologia Daciolo-Anfip, o Orçamento da Seguridade Social exclui o Plano de Seguridade Social do servidor, altamente deficitário e subsidiado pelos demais cidadãos.
Tá repreendido dizer que não tem déficit na Previdência.
2) “Eu tô falando também de empresas que devem à Previdência Social mais de R$ 400 bilhões.”
Aliás, parece ter sido isso que Daciolo se referiu no debate quando disse haver “400 bilhões de sonegadores” e foi ironizado: justiça seja feita, ele falava do valor, não do número de pessoas.
Você já deve ter ouvido falar também que grandes empresas devem mais de R$ 400 bilhões ao INSS. De fato, a dívida que a Previdência teria para receber (dívida ativa) é de mais de R$ 400 bilhões. Ela não é só de empresas: parte importante é do próprio Estado.
Entre os 50 maiores devedores, 24% são do setor público. Estão na lista de devedores ou refinanciando seus débitos dezenas de prefeituras, órgãos estaduais, empresas estatais e até universidades públicas. Ainda que pagassem, não é verdade que há uma grande soma de dinheiro a receber do setor privado: para parte da dívida recebê-la significa apenas trocar de bolsos dentro de uma mesma calça (o Estado).
Entre as empresas, as maiores devedoras são a Varig, a Vasp e a Transbrasil – todas mortas. Elas não são exceções: entre as maiores dívidas 42% são de massas falidas ou empresas em recuperação judicial.
Talvez por isso a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) classifique menos de 5% da dívida como tendo “alta chance” de recuperação. Procuradores reclamam que muitas dívidas inexequíveis permanecem tempo demais na lista, sendo infladas pelos juros e criando a impressão que o órgão é ineficiente.
É louvável que busquemos instrumentos para melhorar a cobrança da dívida, mesmo a parcela recuperável sendo pequena, mas uma ressalva importante ao discurso de Daciolo é que a dívida ativa é um estoque: a despesa previdenciária é um fluxo. A primeira é um valor acumulado do passado (como um patrimônio), a segunda é contínua (uma renda), o que impede que sejam comparadas.
Quer fazer uma proposta inteligente para o problema da Previdência pelo lado da receita? Em vez de negar o déficit ou falar das grandes empresas devedoras, critique a sucessão de programas de refinanciamento (Refis), que estimula em escala difícil de medir maus pagadores a não arcarem com suas obrigações, à espera do próximo perdão e parcelamento.
Tá repreendido dizer que não se cobra grandes empresas que devem R$ 400 bilhões pro INSS.
3) “O governo desse presidente temporário, que faz parte dessa organização criminosa, que é o chefe da organização criminosa, já mandou o orçamento de 2018 colocando mais de 50% pra dívida pública. Simplesmente eles querem massacrar o povo, não aplicam em saúde, educação, segurança. (…) Essa dívida pública, de juros sobre juros em cima do povo. Quer dar a solução agora do problema financeiro e econômico do Brasil? Uma auditoria fiscal, auditoria na dívida pública.”
Esse terraplanismo nós já discutimos na coluna da semana passada. Temos déficits primários desde 2014, o que significa que o governo não tem destinado nenhum centavo para a dívida pública. As despesas com saúde, educação, segurança, etc, são muito maiores do que o governo arrecada com tributos, e a conta não fecha: é o déficit primário de mais de R$ 120 bilhões por ano, financiado por mercado. Daciolo acredita no contrário: que o governo poupa para pagar seus credores.
A graça aqui fica pela menção ao presidente Michel Temer. Ele será o primeiro presidente desde José Sarney a não fazer nenhum ano de superávit primário. Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma conseguiram separar dinheiro dos tributos para quitar a dívida (em parcelas muito menores do que o Cabo Daciolo diz).
Ironicamente, a extrema-esquerda e a extrema-direita que criticam o rentismo de Temer deveriam reverenciá-lo por não separar nenhum centavo dos impostos para a dívida. A situação é tão desesperadora no Brasil que o presidente que dirige sobre crescimento explosivo da dívida é criticado por ser austero.
Está repreendido dizer que 50% do orçamento é para dívida à custa de saúde e educação.
Nesta segunda-feira, Daciolo divulgou vídeo em um monte: subiu para fugir dos que querem assassiná-lo e está em jejum. Aproveitou para novamente negar o déficit, dizendo que há dinheiro de sobra na Previdência e prometeu expulsar da nação a Nova Ordem Mundial, os Illuminati e a Maçonaria.
Não passe vergonha. Não seja o Cabo Daciolo dos seus grupos de WhatsApp.