Em 2007, um deputado do PP apresentou projeto que seria anos depois aprovado pelo Congresso, vetado parcialmente por Dilma Rousseff e viraria uma das principais polêmicas da reforma trabalhista. Apesar da origem no mais conservador dos grandes partidos, a pauta terminou abraçada entusiasmadamente pela esquerda. O longo trajeto do projeto de 2007 às eleições de 2018 é uma aula sobre efeitos indesejados de legislação e a força de narrativas em nosso debate político.
Comecemos com o depoimento da enfermeira A. P. M, diretamente afetada pela lei sancionada com veto em 2016:
“Sou enfermeira há 12 anos e há 7 tento uma gravidez, que agora me parece um sonho remoto, pois trabalho no período noturno e minhas obrigações financeiras já contam com a receita do adicional noturno que recebo. Declaro minha infinita frustração com a vigência dessa lei, que ao meu ver não nos protege de nada, apenas nos coloca num grau extremo de subordinação e inferioridade.”
A lei proibia mulheres gestantes e lactantes de trabalhar em local insalubre, cortando também o respectivo adicional – parte importante do salário. Por pressão de médicas e enfermeiras como a do relato acima, a Câmara dos Deputados acrescentou alteração à reforma trabalhista, de 2017, desfazendo a lei de 2016.
Você pode ter ouvido essa história de maneira diferente: que a malvada reforma trabalhista retrocedeu décadas e botou mães para trabalhar em locais insalubres. O que a reforma fez foi meramente reverter uma lei do ano anterior, não uma previsão da CLT original ou de outra norma antiga.
O projeto proibindo gestantes e lactantes de trabalharem em locais insalubres foi apresentado em 2007. A Câmara o aprovou em 2014 (sem passar pelo plenário), e o Senado em 2016. Só que, ao sancioná-lo, a presidente Dilma vetou uma parte importante: o pagamento do adicional de insalubridade para as mães. Esse corte no salário não constava do texto aprovado pelo Congresso!
Da noite para o dia, milhares de mulheres descobriram que teriam os salários cortados se quisessem ser mães. Até o valor durante a licença-maternidade ficaria reduzido.
Daí decorreu a natural mobilização, meses depois, para modificar a lei durante a reforma trabalhista. Note que a mudança não constava da proposta do governo Michel Temer, mas foi adicionada a ela por influência da bancada feminina na Câmara. A lei de 2016 queria proteger, mas acabou prejudicando.
De todo modo, permaneceu terminantemente proibido o trabalho em caso de insalubridade no grau máximo (ex: coleta de lixo urbano, galerias de esgoto). Nos grau médio e mínimo, com atestado médico. Em qualquer caso, é obrigatório o uso de equipamento de proteção individual para qualquer trabalhador que atue em ambiente insalubre.
A narrativa que predominou, porém, foi outra. Os próprios sindicatos, a quem caberia defender a mudança, notadamente da área de saúde, pareceriam ter outras prioridades (afinal a reforma trabalhista acabou com o imposto sindical obrigatório).
Agora o assunto (e a narrativa) volta nas eleições, em que diversos candidatos escolhem a questão das gestantes e lactantes para atacar a reforma trabalhista.
Ciro Gomes (PDT) chamou de selvageria, pois permitiria que um patrão alocasse uma “prenha em ambiente insalubre”. Guilherme Boulos (Psol) disse que a reforma é 100% contra os trabalhadores: “Mulher grávida poder trabalhar em local insalubre? Quem ganha com isso? Não é a mulher grávida”.
Manuela D’Ávila (PCdoB) afirmou que era cruel: “a cara da falta de preocupação do governo Temer com os direitos das mulheres”. Mesmo Marina, que não é a favor de revogar a reforma como os demais, “com certeza” alteraria este ponto, draconiano.
Um dos principais mal-entendidos – além da origem da lei e do corte de salário resultante – parece ser sobre o grau de insalubridade. Talvez para a opinião pública insalubridade se refira ao que é na verdade insalubridade de grau máximo – que continuou vedada. No Brasil a Justiça chega a considerar call centers como de grau de insalubridade médio.
Sim, sem a reforma até atendentes de telemarketing poderiam ser afastadas compulsoriamente do trabalho. A atividade é insalubre por conta dos fones de ouvido: devem ser utilizados até 85 decibéis (cerca de somente metade do volume). Outros casos polêmicos de insalubridade reconhecida (máxima) incluem faxineira que usa água sanitária para limpar o chão ou retire lixo de banheiro.
Assim, é evidente que a proibição do trabalho na presença de qualquer nível de insalubridade não só geraria perda de renda para um grande contingente de mulheres, como desestimularia a própria contratação desse grupo.
Infelizmente, o grupo demográfico mais afetado pelo desemprego é o de mulheres jovens, em idade fértil. Em 2017, a taxa de desemprego ampliado era maior que 50% para mulheres até 19 anos; maior que 30% entre 20 e 24 anos; e maior que 20% entre 25 e 29 anos. Estudo recente mostra que mulheres têm por quase toda a vida maior probabilidade de estarem desempregadas do que homens: a situação só se inverte depois dos 50 anos.
O efeito foi reconhecido pela própria presidente Dilma. O veto feito ao afastamento com pagamento do adicional (previsto no projeto original) foi assim justificado:
“Poderia ter efeito contrário ao pretendido, prejudicial à trabalhadora, na medida em que o tempo da lactação pode se estender além do período de estabilidade no emprego após o parto, e o custo adicional para o empregador poderia levá-lo à decisão de desligar a trabalhadora após a estabilidade, resultando em interpretação que redunde em eventual supressão de direitos.”
Ou seja, o empregador obviamente observa que o custo de empregar a mãe é maior. O resultado: supressão de direitos.
Esse foi o principal argumento da Confederação Nacional de Saúde (CNS) que, antes da reforma trabalhista reverter a situação, tentou a mudança no Supremo – alegando inconstitucionalidade pela “discriminação de inúmeras mulheres jovens em estado fértil”: “ao avaliar a contratação de uma mulher jovem e sem filhos, [o empregador] por óbvio vai optar por contratar um funcionário do sexo masculino, já que este não está amparado pelos benefícios da lei”.
O procurador-geral da República (PGR) à época, Rodrigo Janot, não concordou com o pedido, mas reconheceu o possível efeito de “retratação da participação da mulher no mercado de trabalho”, sugerindo medidas compensatórias.
O desafio dos efeitos adversos da proteção à maternidade no mercado de trabalho não é só do Brasil. Em um limite extremo, os Estados Unidos nem sequer garantem o direito à licença-maternidade paga. Na vanguarda, países como os escandinavos preferem a “licença-parental”, distribuindo o ônus no mercado de trabalho entre mães e pais.
Políticas como a alterada pela reforma trabalhista não apenas podem ser ruins para as mulheres, mas tendem a prejudicar o próprio combate à pobreza. A pobreza é desproporcionalmente concentrada em crianças no Brasil (elas são 43% dos pobres). O tipo de domicílio com maior incidência de pobreza é o de mulheres com filhos e sem cônjuge (taxa de pobreza de 56%!).
Fazia mesmo sentido tornar mais caro empregar mulheres? E, no caso das mães que conseguem empregos, cortar seus salários?
Neste complexo debate, a narrativa falaciosa vem prevalecendo. Uma opção no meio do caminho pudesse ser liberar o trabalho para mães médicas e enfermeiras – cujo trabalho é sempre em locais insalubres – e deixar que outras categorias decidissem de acordo com suas particularidades por negociação coletiva, fortalecida na própria reforma.
Encerro o texto com quem tem o lugar de fala: o desabafo indignado (pré-reforma) de uma profissional de saúde sobre a lei que a reforma trabalhista desfez.
“Quero ver quem vai arcar com o desemprego feminino daqui uns anos! Quem propôs esse desatino não pensou em longo prazo! Estabelecimentos com atividades insalubres DEIXARÃO de contratar mulheres! As empresas privadas entrarão em falência tendo que arcar com inúmeras contratações para substituição da gestante/lactante. A Sociedade Brasileira de Pediatria sugere amamentação até os 2 anos da criança! E aí? Haverá daqui uns anos uma massa feminina desempregada! E voltaremos às ruas para queimar sutiãs? Os cursos na área da saúde são em grande maioria composto por mulheres! Os hospitais também! Pra onde serão destinadas as gestantes/lactentes? Administrativo? Há espaço pra isso? Sou mulher, em idade fértil, trabalhadora da área da saúde e me sinto extremamente prejudicada por essa lei, ao meu ver, ridícula! Extremamente! A intenção é proteger a gestante e a criança? Desculpe-me, mas sinto-me completamente vulnerável ao desemprego agora! Se a intenção era essa, muito obrigada, mas de boas intenções o inferno está cheio!”
O autor agradece os comentários de Fernando Hugo Miranda e Antonio da Silva Neto.
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