O Executivo enviou ao Congresso projeto prevendo a “vedação do reajuste do salário mínimo acima da previsão de variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor”. O ano era 2016 e a presidente era Dilma Rousseff. Agora foi Jair Bolsonaro quem enviou projeto sem previsão de reajuste real do salário mínimo nos próximos anos. A reação mostra que muita gente esqueceu que já no governo do PT a política de valorização do salário mínimo caminhava para seu fim.
Uma coisa precisa ficar clara: ser contra a renovação da atual política de valorização do salário mínimo não significa ser contra o combate à pobreza. Existem hoje opções mais efetivas na redução da miséria, tanto porque a política do salário mínimo foi bem-sucedida e se exauriu quanto porque outras ferramentas mais recentes vingaram (como o Bolsa Família).
O que é a política de valorização do salário mínimo
A proposta de Dilma se deu em meio a um projeto de teto de gastos. A vedação ao reajuste acima da inflação para o mínimo se daria quando fosse atingido o teto – que era diferente do teto de Michel Temer por ser relativo ao PIB, embora este também preveja proibição de aumento do mínimo. Já Bolsonaro meramente encaminhou a previsão de ausência de reajuste no projeto de lei de diretrizes orçamentárias.
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Pela regra que se encerra este ano, o salário mínimo é reajustado pela inflação do último ano e pelo crescimento do PIB do penúltimo ano. Por conta da recessão em 2015 e 2016, já não houve aumento real em 2017 e 2018. Esta fórmula foi institucionalizada em 2011, e renovada em 2015 – embora desde 2014 o ex-ministro Nelson Barbosa defendesse sua revisão.
Feita esta digressão, duas perguntas são essenciais para este debate. Quem recebe o salário mínimo? E quem é pobre no Brasil?
Quem recebe o salário mínimo?
A política de valorização do salário mínimo é essencialmente uma política previdenciária, e não de mercado de trabalho. Muito mais pessoas recebem o salário mínimo por meio de um benefício previdenciário do que por meio de um emprego com carteira assinada.
É por isso que o governo tem um custo quando o salário mínimo aumenta, e não porque a União empregue muitos servidores que ganham o salário mínimo.
Como no Brasil, ao contrário de outros países, o salário mínimo é também o piso previdenciário (ninguém pode receber menos do que o salário mínimo como aposentadoria, mesmo que tenha contribuído sobre valores menores), o salário mínimo afeta muito os gastos do governo.
Em 2015, 23 milhões de brasileiros recebiam o salário mínimo pelo INSS, mas somente 5 milhões por carteira assinada.
Além dos benefícios previdenciários, outros benefícios são atrelados ao salário mínimo. É o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), do abono salarial e do seguro-desemprego.
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Não apenas o valor dos benefícios é elevado, mas mais pessoais podem receber os benefícios quando o salário mínimo aumenta. Isso porque o mínimo é a referência para entrar nesses programas. No BPC, pago a idosos e pessoas com deficiência pobres, o salário mínimo é referenciado como linha de pobreza. Quando ele sobe, a linha de pobreza aumenta e mais pessoas passam a ser consideradas pobres para poder receber o benefício.
Quem é pobre no Brasil?
O problema do salário mínimo é que ele não é o mínimo. Dezenas de milhões de brasileiros recebem menos do que o salário mínimo. É o caso de parte da multidão de trabalhadores informais (pense em um vendedor de balas no sinal) e dos que recebem do benefício com maior número de beneficiários da Seguridade: o Bolsa Família, que não é vinculado ao salário mínimo.
Conforme a ótima calculadora do Nexo, alguém com renda de um salário mínimo ganharia mais do que quase 40% da população brasileira. No Maranhão, ganharia mais do que 70% da população!
(O exercício merece algumas ressalvas. Por ser baseado em pesquisa domiciliar subestima renda dos mais ricos. É preciso contemplar ainda que boa parte dos que recebem o salário mínimo mora com alguém, razão pela qual a renda per capita cairia.)
Contudo, o exercício joga luz para uma realidade dura: dezenas de milhões de brasileiros pobres não são afetados pelo aumento real do salário mínimo.
E, ao contrário, o aumento pode até mesmo gerar escassez de recursos que os beneficiem (como Bolsa Família, investimento público).
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Existem dois canais principais pelas quais o salário mínimo poderia combater a pobreza (ou prejudicar seu combate). Por meio dos benefícios sociais a ele vinculados (que por outro lado diminuem os recursos para outros gastos) e por meio de aumentos salariais no mercado de trabalho (que por outro lado aumentam a chance de desemprego).
Nesta coluna focamos no primeiro canal, o do gasto público, deixando o segundo, o do mercado de trabalho, para o próximo texto.
Benefícios de um salário mínimo chegam menos aos mais pobres
Em comparação com o Bolsa Família, os benefícios ligados ao salário mínimo pagam valores maiores e são mais mal focalizados, normalmente voltados para quem já tem emprego formal ou com linha de corte relativamente mais alta (caso do BPC).
Tal resultado pode ser evidenciado pelo gráfico abaixo, com dados calculados pelo Banco Mundial. Enquanto mais de 60% dos beneficiários do Bolsa Família estão no quintil mais pobre da população, esta proporção é bem menor para os benefícios vinculados ao salário mínimo.
Incidência de recursos no quintil mais pobre (20% mais pobres) – 2015
Revisão da política significa seu sucesso, não seu fracasso
A conclusão é de que o combate à pobreza deveria priorizar quem ficou para trás. Ou seja, os brasileiros que são ainda mais pobres, que não recebem o salário mínimo e que são potencialmente afetados negativamente pelo seu aumento.
Observe na figura abaixo, também do Banco Mundial, como o Bolsa Família alcança mais pessoas (eixo horizontal), paga valores menores (eixo vertical), e tem custo fiscal menor (tamanho da esfera) do que outros benefícios sociais.
Por exemplo, um aumento do salário mínimo em 10% provoca aumento de gasto equivalente a toda a despesa com o Bolsa Família.
Isso não significa que a política de valorização do salário mínimo tenha sido ruim. Ao contrário, pode representar seu próprio êxito – como um bom tratamento de saúde que chega ao fim.
É claro também que não é suficiente para o combate à pobreza o mero fim do reajuste real do salário mínimo. O fato dele não ser a melhor ferramenta meramente implica que existem outras ferramentas mais efetivas, mas elas precisam ser usadas.
Políticas mais pró-pobre, de curto e longo prazo, que poderiam ser feitas com esses recursos, incluem a indexação do Bolsa Família (elegibilidade e valor, que já seria beneficiado pelo 13º criado pelo governo), gastos em primeira infância (como o Pró-Criança) e políticas de emprego (por exemplo, subsídio à contratação de jovens desempregados ou desempregados de longa duração).
De toda forma, são frágeis alegações como a de Túlio Gadêlha, para quem “o governo quer condenar a população a ficar ainda mais pobre” com a ausência do reajuste real.
A valorização do salário mínimo nas últimas décadas, especialmente nos governos do PT, foi importante. Mas na medida em que a proteção social estatal deixou de ser vinculada à carteira assinada e na medida em que o valor do salário mínimo se recompôs, é preciso trocar o caminho fácil do populismo e olhar com mais fraternidade para quem ficou para trás.