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A história alemã tem páginas tenebrosas, como todos sabem, mas as últimas gerações vem fazendo um grande trabalho para mudar esta imagem. A partir de 1949, a Alemanha Ocidental construiu uma democracia sólida, com desenvolvimento econômico acelerado. Em 1989, o povo de Berlim Oriental derrubou o “muro da vergonha” com as próprias mãos. As eleições desta semana mostram uma democracia estável onde o diálogo impera e a polarização não se cria — exatamente o contrário do que se observa em boa parte do mundo.
Quatro partidos vão controlar 612 (ou 83,3%) das 735 vagas disponíveis no Parlamento. Eu me refiro, do mais para o menos votado, ao Partido Social-Democrata (SPD), à União da Democracia Cristã (CDU/CSU), ao Partido Verde (Grüne) e ao Partido Liberal Democrata (FDP). Há radicais no Parlamento alemão, mas são minoria e ainda encolheram nas eleições de 2021.
Como nenhum partido obteve maioria, o governo será formado por uma coalizão. Não é um problema grave. Afinal, a polarização não paralisa a política local, muito pelo contrário. Nos últimos anos, o governo foi formado pela aliança entre democratas cristãos e social-democratas. Ou seja, um partido conservador de origem cristã se uniu a um partido socialista de origem marxista. O leitor consegue imaginar algo parecido no Brasil?
Os socialistas da SPD, mais votados na eleição de 2021, são indiscutivelmente democráticos. Olaf Scholz, favorito para assumir o cargo de chanceler, foi ministro de Angela Merkel. Ele é visto localmente como um político extremamente pragmático e moderado. No passado, o SPD liderou a Alemanha em governos de coalizão com democratas cristãos, liberais e verdes. Não houve guinada autoritária em nenhuma dessas experiências.
A democracia alemã funciona bem e os resultados são nítidos. Enquanto isso, os Estados Unidos sofrem pela falta de diálogo político, com direito a governos paralisados pela dificuldade de se chegar a acordos sobre orçamentos e regras fiscais. A dificuldade de se chegar a um acordo sobre o Brexit mostra que o Reino Unido segue pelo mesmo caminho. O Brasil, então, nem se fala...
Os alemães dão aula de liberalismo político e, assim, conseguem sustentar uma sólida economia de mercado. A dívida pública alemã caiu na última década, indo na contramão do que ocorreu em diversas economias avançadas (como a dos EUA) e emergentes (como a do Brasil). O comércio internacional é intenso, graças à União Europeia, que tem a Alemanha como seu pilar mais firme. A inevitável transição climática tem sido muito mais célere por lá e esse pioneirismo tende a dar grande retorno para a economia alemã, dado que o mundo segue pelo mesmo caminho.
Estados Unidos e Reino Unido costumam ser associados à liberdade e ao liberalismo, ao contrário da Alemanha, frequentemente relacionada a vocês-sabem-quem. É uma injustiça, como bem mostra qualquer livro sobre a história do liberalismo. Um dos melhores e mais recentes (“Lost History of Liberalism”, de Helena Rozenblatt) é extremamente feliz ao abordar nesse ponto. Helena, uma historiadora americana, mostra que os dicionários dos EUA no início do século 20 associavam a palavra “liberalismo” a uma ideologia europeia.
Esta ideologia europeia foi, em grande parte, construída na Alemanha. Muitos lembram de John Stuart Mill, o grande pensador do liberalismo britânico no século 19. Poucos lembram que o alemão Wilhelm von Humboldt era a principal referência de Mill e foi, em grande medida, um dos intelectuais fundadores da tradição liberal.
Se os alemães abandonaram o liberalismo nos anos 1930 e 1940, o fato é que a tradição foi retomada na Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial e persistiu na Alemanha unificada. Passadas algumas décadas, os alemães desfrutam de uma economia de mercado regida pela livre concorrência e uma democracia funcional, onde o diálogo se sobrepõe à polarização.
Na Guerra Fria, era compreensível citar os EUA como modelo de liberalismo. Felizmente, a Guerra Fria acabou e nossas referências políticas precisam se atualizar. Desde a queda do muro de Berlim, a Alemanha vem merecendo reconhecimento como uma das fortalezas do liberalismo, talvez a mais sólida do planeta.
Não se trata de mera retórica. Nesses tempos marcados pelo avanço de forças antiliberais, é importante lembrar de quem, com sucesso, segue carregando a defesa da democracia, da tolerância, dos direitos humanos e da economia de mercado, dentre outros valores indiscutivelmente.
Igualmente importante é perceber que o liberalismo não depende de valores americanos. No Índice de Liberdade Humana, organizado pelo Cato Institute, a Alemanha está na frente dos Estados Unidos e do Reino Unido, sendo a mais bem colocada dentre as nações mais populosas do mundo. Sim, estou falando do mesmo país onde o nazismo floresceu. Felizmente, a história andou e quem persistir nas velhas referências vai ficar pra trás.