Lá se vão quatro anos desde a famosa manchete da The Economist declarando que dados são o novo petróleo. Se a frase estiver correta, e acredito que está, há um grande problema no debate público brasileiro. Temos uma grande crise de credibilidade e transparência dos dados públicos, mas pouco se fala no assunto. Oscilações momentâneas do antigo petróleo recebem mais atenção do que problemas estruturais do novo petróleo.
Há um argumento óbvio para explicar esse desequilíbrio de atenção: o preço da gasolina tem impacto imediato no bolso do brasileiro. Um problema dessa tese é ignorar que a perda de credibilidade dos dados públicos também tem impacto. O suposto Orçamento de 2021 certamente ajuda a explicar o desempenho recente do dólar. O mesmo pode ser dito sobre a metamorfose ambulante na metodologia de monitoramento da pandemia.
Os questionamentos aos números da pandemia e do orçamento já seriam suficientes para falarmos em uma grande crise. Mas a verdade é que os problemas são parecidos em muitas outras áreas do governo federal. Na vacinação, a Fiocruz passa pelo constrangimento de regularmente adiar o próprio cronograma de produção.
O Censo, pesquisa mais profunda e precisa que temos sobre a população do Brasil, deveria ter ocorrido em 2020. Já com um intenso debate sobre corte de gastos, foi adiado para 2021. Após ver as verbas previstas caírem 96,5% no suposto Orçamento de 2021, a presidente do IBGE pediu demissão. O Censo de 2020 ficará, na melhor das hipóteses, para 2022.
Esses são apenas os exemplos maiores: numa das peças mais importantes do ano legislativo (Orçamento), na principal pesquisa pública brasileira (Censo) e nos dados sobre o grande acontecimento histórico do momento (Covid). Entrando em áreas mais específicas do governo os exemplos são ainda mais comuns.
O caso do Caged, cadastro que registra todos os vínculos trabalhistas com carteira assinada, é estarrecedor. A metodologia mudou em 2020, sem que o governo explicasse adequadamente as mudanças. Mesmo assim, o governo compara livremente dados com metodologias diferentes, sem explicar o que fundamenta a comparação. A imprensa, sem o mínimo senso crítico, passou meses repetindo o modo como o governo divulgava os números. Diversos consideram os últimos números do Caged exageradamente otimistas. Está aí uma história muito mal contada.
Eu poderia cansar o leitor com diversos dados públicos que perderam credibilidade nos últimos anos. O movimento começou na área ambiental, ainda em 2019, e hoje é generalizado. Da economia à saúde, da educação ao meio ambiente, diversas áreas da política pública federal são questionadas pelo mesmo motivo.
A produção de informações de interesse público pelo governo traz consigo um dilema. Com frequência, a transparência das informações contraria o desejo do governante. A longo prazo, faz sentido prezar pelo maior grau de transparência possível e fortalecer a autonomia das instituições responsáveis. Porém, a divulgação dos dados pode prejudicar os interesses de curto prazo dos governantes.
Vale lembrar que o ataque à credibilidade dos dados públicos foi uma marca da guinada autoritária dos presidências Chávez/Maduro na Venezuela e Kirchner na Argentina. As contas públicas de Dilma são exemplos inespáveis – mesmo que o Orçamento 2021 seja, no mínimo, tão grave quanto as fraudes fiscais que derrubaram a ex-presidente.
Porém, Dilma não foi a regra da Nova República. Todos os presidentes tiveram algum legado positivo na produção e transparência de dados, especialmente FHC e Lula. Michel Temer pode dizer que foi o primeiro presidente que produziu dados regulares, oficiais e confiáveis na área da segurança. Bolsonaro, em contraste, até agora é desastroso quando se discute transparência.
Dados confiáveis parecem uma preocupação pequena num país cheio de urgências. Especialmente porque o Brasil é primoroso em medir o próprio fracasso. Temos um sistema de avaliação incrível até para países desenvolvidos, mas nossos índices de aprendizagem seguem decepcionando.
Uma observação mais atenta, porém, mostra que a disponibilização de dados públicos já parece impactar positivamente a educação brasileira. Os estados e municípios de maior sucesso recente na educação tem em comum o uso intensivo de dados, além de boas práticas que devem ser seguidas. Outros estados e municípios foram pressionados por mudanças recentes.
Isto porque, nas últimas décadas, houve um boom de centros de pesquisa e organizações da sociedade civil dedicadas à educação pública. Esse boom tem relação direta com a incrível disponibilidade de dados. É interessante pensar nesse exemplo, pois ele mostra a importância da credibilidade.
Quando o governo disponibiliza dados de relevância pública, pesquisadores e especialistas podem avaliar os problemas das políticas existentes, estudar melhorias e avançar nosso conhecimento sobre um tema.
Acredito que se referir a “dados públicos” ou “números oficiais” até subestima a importância das instituições envolvidas. Não estamos debatendo números frios, mas um sistema de inteligência pública. Como qualquer inteligência, seu objetivo é produzir e processar informações, informar as decisões e melhorar as políticas públicas.
Quando os dados públicos perdem credibilidade ou não são divulgados quando esperados, os que perdemos não é o privilégio de ler uma porcentagem qualquer. Não é só um número. O que perdemos, na prática, é inteligência na tomada de decisão. Quando discutimos políticas públicas, o apagão estatístico é a antessala da burrice.
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