Poucos não-economistas sabem disso, mas a Argentina já foi um dos países mais ricos do mundo. Segundo os dados do Angus Maddison Project em 2018, a mais abrangente base de dados históricos sobre PIB per capita, a renda média argentina figurava entre as maiores do mundo na virada entre os séculos 19 e 20. Com escolaridade alta para padrões da época e uma economia conectada ao comércio global, a Argentina era muito mais rica do que o Japão e praticamente toda a Europa latina.
Uma famosa frase do economista Simon Kusnetz, escrita muitas décadas atrás, diz que existem apenas quatro tipos de países quando o assunto é história econômica: desenvolvidos, subdesenvolvidos, Japão e Argentina. A trajetória dos nossos vizinhos é triste e grandiosa como um tango.
Portanto, a auto-sabotagem da Argentina não pode ser tratada como uma notícia desta semana. A volta do kirchnerismo ao poder, caso ocorra, seria típica de um país pródigo na arte da má escolha.
Desde os resultados das primárias, que indicam uma provável derrota de Mauricio Macri nas eleições, espalhou-se em alguns conservadores e liberais o medo de repetirmos, no Brasil, o caminho argentino. Ou seja, crises, instabilidade, rejeição aberta da sociedade às políticas liberais e defesa da volta do intervencionismo econômico vigente no passado.
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Salvo na hipótese de uma grande crise internacional, de eventos excepcionais e imprevisíveis, não vejo esse medo como razoável.
A inflação argentina está se desacelerando, fruto da acertada decisão de estabelecer um regime de metas de inflação por lá. Foi uma das raras reformas que Macri conseguiu implementar, ainda que precariamente. Mesmo assim, os índices seguem superiores a 50%, um patamar que o Brasil nunca viveu com o Real. Nossa inflação, tanto na expectativa para 2019 quanto nas dos próximos anos, segue abaixo de 4%.
O Brasil tem uma moeda forte e estável, Banco Central mais autônomo e um regime de metas que acaba de completar 20 anos com relativo sucesso. Numa perspectiva de longo prazo, a despeito dos anos Dilma, temos feito o dever de casa melhor do que os nossos maiores vizinhos ao sul.
No front externo, a Argentina sofre. Em junho passado, o FMI lançou um interessante relatório avaliando o nível de reservas internacionais retidos por cada banco central. Em todas as métricas, o Brasil está acima ou próximo do nível máximo recomendado, enquanto a Argentina está abaixo ou próxima do nível mínimo. Na prática, isso significa que a Argentina está muito vulnerável a mudanças abruptas no cenário externo.
No fim da década de 1990, o Brasil passou por problemas semelhantes aos atuais da Argentina. Com um baixo nível de reservas e uma taxa de câmbio instável, a dívida pública – parcialmente denominada em dólar – disparou. Desde então, decidimos diminuir a exposição da dívida pública a moeda estrangeiros. Hoje, virtualmente tudo o que o governo brasileiro deve está denominado em real.
Nosso grande problema está no orçamento público descontrolado. A parte mais difícil e importante da solução, porém, já foi aprovada pela Câmara. Mesmo sem estados e municípios, o déficit do governo federal é o mais relevante para a estabilidade econômica.
O caminho é difícil, mas ao menos estamos encaminhados. Os argentinos, por sua vez, estão descaminhados. E esta é uma questão que transcende disputas entre Bolsonaro e o PT. Foi no governo Lula que o Brasil consolidou o regime de metas criados por FHC e Armínio Fraga, e com Meirelles fortalecemos a posição de reservas do Banco Central. Depois dos desastres dilmistas, o governo Bolsonaro deve aprovar a reforma previdenciária. Nossas instituições econômicas são mais sólidas que as argentinas por construção coletiva, ideologicamente plural.
É isto que os economistas chamam de “fundamentos macroeconômicos”, nos quais o Brasil certamente vai melhor. Se novas crises surgirem, dificilmente serão por fatores internos. No curto prazo, não seremos uma Argentina.
Nosso medo deveria ser outro. Desde o início dos anos 1980, o crescimento do PIB per capita brasileiro tem sido muito lento. Nossas instituições prejudicam o desenvolvimento de longo prazo do país.
O manicômio tributário, a insegurança jurídica, o capitalismo cartorial, a economia fechada e demais fatores microeconômicos que prejudicam a produtividade do país deveriam constituir nossa maior fonte de preocupação. A Argentina conseguiu a proeza de tornar-se ex-rica justamente pelo baixo crescimento de longo prazo no século 20. Na raiz do atraso, estão instituições terríveis, instáveis, antiprodutivas, como as nossas.
Esse cenário, muito pior do que qualquer resultado eleitoral ou recessão, já está ocorrendo, de certa forma. Nas últimas décadas, o Brasil avançou mais do que os Estados Unidos em número de trabalhadores, acúmulo de capital e escolaridade da população, mas mesmo assim nosso PIB per capita cresceu menos que o americano.
O baixo crescimento médio por muitas décadas está na origem do desastre argentino e deveria constituir o verdadeiro medo para os brasileiros neste momento. O grande risco é a complacência após a previdência. Precisamos resolver o rombo fiscal aberto pelos fracassos de Dilma, mas é muito mais importante resolver as amarras que atrapalham o Brasil desde muito antes dos governos petistas.
Para fugir desse risco, não basta aprovar uma reforma. É necessário propósito, harmonia institucional e, não menos importante, uma sociedade aberta que incentive os agentes políticos à autocrítica. Esta é a batalha que vai definir se o país do futuro tem futuro. Aguardemos os próximos capítulos.