Após o sucesso da Guerra do Paraguai, em meados do século 19, a democracia brasileira viveu sob intervenção militar por aproximadamente um século, até o fim da ditadura de 1964-85. As instituições militares de ensino, desde então, incentivam os oficiais a se enxergarem como os verdadeiros guardiões do interesse nacional, a quem cabe tutelar uma população inapta para viver sob democracia. Essa ideologia militar foi solidificada por Benjamin Constant, mas é facilmente identificável nos discursos de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.
Há quem compare Mourão com generais americanos, que participam da política respeitando liberdades civis. Deve ser a primeira comparação não-irônica entre o nosso Exército e o dos Estados Unidos. Nossos generais têm sido canalhas políticos ao longo da história. Se for para compará-los com estrangeiros, seria mais justo citar um país cuja história inclua ao menos cinco golpes de Estado liderados pelo Exército.
O golpe de Estado que derrubou a monarquia foi o ato de abertura dessa tradição. O segundo presidente da República, o marechal Floriano Peixoto, teve um histórico de assassinatos e repressão de dar inveja a qualquer Garrastazu. Prudente de Morais, terceiro presidente e primeiro civil a chegar ao cargo, sofreu um atentado – o leitor consegue adivinhar de qual instituição o atirador fazia parte.
As Forças Armadas tinham tanto peso político na Primeira República que o presidente Nilo Peçanha chegava a pendurar quepes de generais na porta da sua casa, pois seria mais respeitado se os transeuntes pensassem que ele se reunia com a alta oficialidade. Quando os militares voltaram a comandar diretamente o poder político, sob Hermes da Fonseca, o presidente logo jogou o país em Estado de Sítio.
Entre os anos 1920 e 1985, a democracia brasileira foi constantemente instabilizada por militares. Tentativas de golpe ocorreram nos anos 30, 40 e 50. As duas mais longas ditaduras na história brasileira foram sustentadas por militares nesse período – primeiro, apoiando Vargas; depois, governando diretamente.
Nem todos os militares foram golpistas em nossa história. O marechal Henrique Teixeira Lott impediu rupturas constitucionais em dois momentos, quando seus colegas tentaram impedir a posse de Juscelino Kubistchek em 1955 e a de Jango em 1961. Em represália, Lott teve seus direitos políticos cassados, foi enterrado sem honras militares e enterrou uma filha em 1971, em assassinato que desde então tem sido associado ao regime militar, pois se tratava de uma notória denunciante da tortura ditatorial.
Um século de autoritarismo militar não surgiu a partir do acaso. Havia uma ideologia sustentando cada um desses episódios. Eles, militares, acreditam que pensam no país e podem decidir melhor do que nós, sociedade civil, pois somos bobinhos demais para constituir um país saudável.
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Foi por isso que colocamos os militares em sua devida caixinha institucional, afastando-os dos debates políticos nas últimas três décadas. Ou o militar obedece políticos eleitos, cujos atos são restritos pela Constituição de 1988, ou é um criminoso fardado. Infelizmente, Mourão e Bolsonaro evidenciam que a ideologia dos velhos militares seguiu reinando nas Forças Armadas durante o período. Milicos que se enxergam patriotas nem precisam fingir que respeitam freios e contrapesos. Na verdade, candidato e vice nem se importam em mostrar que sabem o que é isso.
Se o leitor procurar meu nome no Google, encontrará dezenas de textos meus criticando o PT, seu legado e a chocante falta de reflexão do partido. Mas, sem uma boa dose de cegueira histórica, é impossível ver o legado do petismo como pior do que o dos militares.
Antes de mais nada, o Exército foi erva daninha na democracia brasileira por um período aproximadamente 10 vezes maior. A guinada autoritária dos militares também foi mais profunda e sangrenta. Mesmo os erros da economia foram mais decisivos para o subdesenvolvimento brasileiro.
Como bem lembram os economistas Daron Acemoglu e James Robinson, a democracia liberal faz muito bem ao desenvolvimento econômico. E, se não a desenvolvemos com solidez no Brasil, boa parte da culpa está na turma que adora pegar em armas por pensar que a sociedade precisa de babás patrióticas para substituir políticos sujos.
O legado de política econômica dos militares foi igualmente terrível. Após um breve período de responsabilidade econômica no governo Castello Branco, seguido pelo enganoso “milagre”, os milicos lançaram um festival de bobagens. O regime acabou sem que o governo tivesse sequer um orçamento confiável, após anos de pedaladas via inflação.
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A insustentabilidade fiscal dos direitos concedidos na Constituição de 1988, problema que tem travado o país, nos levando a uma crise econômica colossal após os petistas o empurrarem com a barriga por anos, também tem relação direta com a ditadura. Analistas de respeito, como o economista liberal Marcos Mendes e seu xará à esquerda Marcos Nobre, apontam para o governo militar como explicação para nossa democratização fiscalmente irresponsável.
Hamilton Mourão, o primeiro general com boas chances de comandar a República desde Figueiredo, nos oferece zero autocrítica ao falar sobre o passado das Forças Armadas. Na GloboNews, apontou os erros de política econômica como pontuais e derivados de um curto período do governo Geisel – mais ou menos o mesmo que o PT permite a Fernando Haddad, que também tem críticas pontuais ao governo Dilma. Com relação aos assassinatos e tortura, seria muito bom escrever que Mourão se cala, porque o que ele tem feito mesmo é celebrar os crimes de seus colegas.
Por isso, vale a pena escrever que Mourão é um asno arrogante que se vende como o único brasileiro patriota, mas no fundo só pensa em acumular poder. Nossas Forças Armadas, cuja história tem mais golpes fracassados do que guerras vencidas, tem prestado um péssimo serviço à pátria. Mourão, vendido por alguns como Eisenhower, no máximo é um ás sem aura, um comandante sem virtudes que tem como herói quem trabalhou para transformar esse país numa republiqueta de bananas. Bolsonaro e seu vice não tem autoridade moral para engraxar o sapato de um Persio Árida, torturado por milicos sem jamais pegar em armas e, posteriormente, criador do Plano Real que desfez bobagens da ditadura.
Reconheço que o último parágrafo tem palavras pesadas. Não sei se concordo com tudo o que escrevi aí em cima, mas é bom escrever isso enquanto posso. Se Bolsonaro e Mourão vencerem a eleição e repetirem os caras que eles admiram, pode ser a minha última oportunidade de xingá-los num jornal. Entre colocar o Exército Brasileiro ou a imprensa numa caixinha, não tenho dúvidas sobre qual a opção correta.