Passava o ano de 2005 quando o então ministro da Fazenda Antonio Palocci, com aval do presidente Lula, começou a executar um plano ambicioso: zerar o déficit nominal num prazo de cinco a dez anos – isto é, promover um ajuste fiscal até que as despesas do governo, inclusive os gastos com juros, ficasse menor do que a receita líquida.
O Brasil já tinha superávit primário, gastava menos do que arrecadava, desconsiderando a despesa financeira. Mas um superávit que incluísse os juros da dívida era uma meta extremamente ambiciosa. E ainda é: o boletim Focus divulgado na segunda-feira (21) mostra uma expectativa mediana de -6,4% do PIB para o resultado nominal em 2019, bagatela próxima a meio trilhão de reais. No relatório Fiscal Monitor de 2018, do FMI, um resultado nominal zero ou positivo é o que se espera para 2 países (Equador e Kuwait) entre as 39 economias emergentes analisadas.
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No nem tão distante ano de 2005, o desafio estava longe do impossível. O superávit primário daquele ano foi de 4,35% do PIB, superior à meta de 4,25% estabelecida pelo governo. O problema estava nas despesas financeiras, da ordem de 7,32% do PIB, que nos levava a um déficit nominal de 2,96%. Os juros estavam altos, especialmente por conta da crise inflacionária após a vitória de Lula em 2002. Mas a inflação cedia, tendo caído de 12,53% em 2002 para 3,14% em 2006. Com isso, abria-se espaço para uma queda de juros nos anos seguintes, que levaria junto as despesas financeiras.
Esta Gazeta do Povo, em novembro de 2005, publicava em manchete: “Déficit Nominal zero pode ser alcançado nos próximos anos”. A alta carga tributária já era citada pelo governo como razão para focar o ajuste nos gastos, e não nas receitas. “Se nós tivermos estabilidade no nosso trabalho de melhorar o perfil do trabalho fiscal e cuidar da qualidade da despesa pública, nós iremos, ao longo dos próximos anos, provavelmente, chegar ao déficit zero, fazendo uma política equilibrada e ajustada, em termos orçamentários”, dizia o então ministro Antonio Palocci.
Os planos do governo para alcançar a meta soam familiares em 2019. Discutia-se o aumento da eficiência através de inovações na gestão pública; a criação de uma metodologia rigorosa de avaliação dos gastos; foco em políticas sociais condicionadas à pobreza do beneficiário (como o Bolsa Família); e uma reforma da Previdência que unificasse os diversos regimes, troca do fator previdenciário por idade mínima e fim da vinculação entre previdência e salário mínimo. Me faz lembrar a clássica frase de Ivan Lessa: “A cada 15 anos, o Brasil esquece o que ocorreu nos 15 anos anteriores”.
Tudo conspirava para que resolvêssemos com profundidade inédita o descontrole das contas públicas que acompanhou toda a nossa história republicana. E Palocci também conspirava com empresários de Ribeirão Preto, entre prostitutas e maços de dinheiro vivo, sob olhares do caseiro Francenildo Costa, que declarou tudo à CPI dos Correios.
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Foi a corrupção que abortou o plano de ajuste proposto por Palocci. Com as denúncias daquele ano, os dois ministérios mais importantes da Esplanada seriam ocupados por Dilma Rousseff e Guido Mantega.
Lula, com medo de perder a reeleição, engavetou os planos de Palocci. Dilma, numa das suas primeiras entrevistas como protagonista do poder, disse que o plano paloccista era “rudimentar”. “Gasto é vida”, disse a então ministra-chefe da Casa Civil.
O problema continua o mesmo. A diferença é que, em 2019, os custos de resolvê-lo são consideravelmente maiores, de modo que as metas são bem menos ambiciosas.
Desde que comecei a me interessar pelo problema fiscal brasileiro, adquiri o hábito de perguntar a opinião de gente comum, que não é economista, nem escreve em jornal. Hábito estranho, eu sei, mas muito educativo. Diaristas, garçons no bar da esquina, motoristas de Uber e quase todos que me dão liberdade para tocar no assunto tem um discurso bastante parecido. O problema existe, reconhecem, e a solução passa por fazer os caras lá em Brasília pararem de roubar.
Sempre vi esse diagnóstico como essencialmente incorreto. Combater a corrupção não é suficiente. Como já escrevi noutras colunas, o xis da questão está em convencer o brasileiro médio a perder direitos.
Se os R$ 51 milhões guardados nas infames malas de Geddel fossem recuperados todo ano, na casa de todos os senadores, deputados e ministros do governo federal, o montante recuperado seria pouco superior a R$ 30 bilhões, próximo ao déficit previdenciário do mês de setembro de 2018. E repare o leitor que o valor é ridiculamente exagerado, muito maior do que foi recuperado em toda a Lava Jato. Geddel não era um deputado médio, mas um protagonista do MDB, e acumulou os R$ 51 milhões ao longo de uma vida de corrupção, e não num ano isolado.
Recentemente, comecei a pensar que eu também estava errado ao desprezar a importância da corrupção para a formação do problema fiscal brasileiro. Como no caso de Palocci e seu fracassado ajuste, a corrupção tem sido protagonista ao impedir uma solução política para o descontrole, ainda que seu impacto econômico direto nas contas públicas seja insuficiente.
Pouco depois da posse de Dilma em 2011, o governo federal tentou voltar a realizar um ajuste fiscal. Um dos responsáveis pelo desafio era o próprio Palocci, que voltou ao poder conforme a população esquecia do caso Francenildo. E logo caiu novamente, quando contratos de consultoria suspeitos foram descobertos pela imprensa.
Após a saída de Palocci, o governo Dilma foi progressivamente ignorando o descontrole das contas públicas e abrindo o cofre sem medo. A gastança do primeiro governo Dilma era estratégica para o PT em dois sentidos: facilitava a reeleição em 2014 e o financiamento de campanhas através de propinas.
Passada a eleição, Dilma passou a considerar a seriedade do problema fiscal. Mas os fantasmas que ela mesma havia criado passaram a assombrar o governo: ninguém queria saber de discutir questões impopulares com um governo que negava o problema até poucos anos antes e se tornava progressivamente impopular após denúncias de corrupção.
O ajuste de Temer teve o mesmo vilão que vitimou os planos de Dilma e Palocci. A atuação de Rodrigo Janot no caso Joesley é certamente discutível, mas é fato que a população não topava discutir sacrifícios com um presidente de reputação tão suja quanto a de Michel “tem que manter isso aí” Temer.
A corrupção trabalha contra o ajuste fiscal ao deslegitimar decisões impopulares cujos proponentes têm fama – geralmente justa – de ladrões. Ajuste é sacrifício. É difícil convencer a população a abrir mão de direitos se o poder é ocupado por parasitas do dinheiro público.
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É importante que Bolsonaro entenda essa lição. Sem discutir o mérito do caso Queiroz, uma má condução deste pelo presidente pode colocar água no chope dos reformistas, mais uma vez. Bolsonaro tem a oportunidade de resolver a questão, na medida em que foi eleito representante legítimo dos brasileiros, e conta com a confiança do eleitor mediano neste momento.
Se o líder da tal Nova Era for visto como um político comum, como mais um parasita, a esperança terá sido em vão. Cabe a Bolsonaro ignorar interesses caros aos militares do governo, mostrar que seu ajuste é pra valer e colocar o Brasil acima dos interesses de Brasília.
Acho provável que suas propostas sejam sérias, dado o histórico de Paulo Guedes. A maior parte das propostas de Temer também era séria e atacava privilégios de servidores e políticos. Mas ele não conseguiu convencer a população sobre isso. Por melhores que fossem os economistas ao seu lado, todos lembravam primeiro da longa amizade com Eduardo Cunha ou da mala de Rocha Loures.
Não sei como Bolsonaro vai se desvencilhar das suspeitas que chegam através de Queiroz. Imagino que atacar os investigadores não seja a melhor estratégia, como bem ensina o caso do PT. Só sei que ele precisa dar um jeito de se livrar do problema. A economia brasileira não aguenta mais 15 anos de corrupção deslegitimando o ajuste fiscal.
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