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O debate entre Keynes e Hayek foi discutido por best-sellers e inspirou até batalhas de rap que viralizaram no YouTube. Mas a importância desse debate é, ao menos em certa medida, um exagero retroativo dos austríacos contemporâneos. Dois outros debates protagonizados por Hayek são, na minha opinião, indiscutivelmente mais importantes.
O primeiro, mais conhecido, envolve a possibilidade de alocação racional dos recursos escassos numa economia socialista, e garantiu a Hayek o seu mais famoso prêmio: o cobiçado Nobel de economia.
Quanto ao segundo debate, travado contra William Beveridge, poucos sabem da existência. Não há vídeos virais sobre o assunto e até mesmo textos são raros. Apesar disso, poucos debates do século XX geraram frutos tão importantes, incluindo o sistema de saúde pública mais famoso do mundo (inspirador do SUS), um dos livros políticos mais influentes da história humana e uma cisão entre liberais.
William Beveridge foi o diretor da London School of Economics que levou Hayek para lecionar por lá. Era uma figura influente do Partido Liberal britânico, ativo nos debates políticos locais.
Antes de mais nada, um breve apanhado histórico. O Partido Liberal britânico foi fundado em 1859 por integrantes de três grupos: os Whigs, arquitetos da monarquia constitucional inglesa; os Peelites, dissidentes reformistas e pró-mercado do Partido Conservador; e os Radicais, grupo à esquerda dos outros dois, que nas décadas anteriores lideraram causas como o abolicionismo e o sufrágio universal. Esses três grupos eram diversos, mas tinham em comum o ímpeto reformista e o respeito ao diálogo democrático. Em 1842, Whigs, Peelites e Radicais fundaram o Reform Club, um clube de debates no centro de Londres. A partir do clube, surgiu o Partido Liberal.
Cem anos depois, nos anos 40 do século XX , William Beveridge e Friedrich Hayek, como bons liberais, eram filiados ao Reform Club. Isso não significa que eles concordassem frequentemente sobre assuntos políticos. Hayek costumava se descrever como um “velho Whig”. Beveridge, por outro lado, tinha uma personalidade política mais próxima dos velhos Radicais. Apesar das discordâncias, ambos eram amigos próximos no início da década de 1930 e Hayek revisava os textos publicados por Beveridge na imprensa local.
No final dos anos 1920, o cenário para os liberais era sombrio. O Partido Liberal perdia força na política britânica, sendo cada vez mais ofuscado pelo Partido Trabalhista. No início dos anos 1930, a ascensão de Hitler e a Grande Depressão aprofundam o pessimismo dos liberais.
Neste contexto, Beveridge começa a se aproximar de intelectuais socialistas da Sociedade Fabiana, sendo influenciado por eles. Poucos intelectuais liberais se aproximaram tanto do socialismo quanto Beveridge naquele período. Ele acreditava que a ascensão de Hitler evidenciava a necessidade de uma mudança de planos por parte dos liberais.
Para Beveridge, o nazismo foi uma resposta conservadora ao comunismo bolchevique. Em resposta a este contexto, para evitar que o mesmo embate sangrento tomasse a política britânica, ele achava que políticas sociais seriam necessárias para interromper o avanço dos revolucionários comunistas, diminuindo também a demanda pelo autoritarismo da direita.
No início dos anos 1940, ainda durante a guerra, William Beveridge escreve a sua obra mais famosa: o relatório “Social Insurance and Allied Services”, propondo uma série de políticas públicas com o objetivo de acabar com a pobreza no Reino Unido. Uma das suas propostas envolvia a criação de um novo sistema de saúde pública e seguridade social que, segundo ele, seria crucial para a sociedade britânica quando a guerra acabasse. Conhecido como Plano Beveridge, o relatório foi escrito em pleno Reform Club, o templo histórico do liberalismo britânico.
O Partido Trabalhista aprovou a ideia e espalhou pela Inglaterra cartazes com o seguinte slogan: “tome uma dose liberal de Beveridge”. Uma campanha nacional transformou o despretensioso relatório em best-seller. Friedrich Hayek não gostou nada daquilo.
Foi neste contexto que Hayek escreveu seu mais famoso livro, “O Caminho da Servidão”, discordando da leitura política de Beveridge. Na leitura hayekiana daquele turbulento período, os nazistas seriam apenas uma variante à direita do socialismo. O que viabilizou o nazismo, segundo Hayek, foi justamente a expansão do poder do Estado. Portanto, para evitar a ascensão de autoritários, seria necessário manter um Estado pequeno e modesto nas políticas sociais. É por isto que “O Caminho da Servidão” abre com uma dedicatória destinada a “socialistas de todos os partidos” – no caso, o recado era para William Beveridge, do Partido Liberal.
Inicialmente, o livro de Hayek não teve muita repercussão na Inglaterra e o plano de Beveridge foi aprovado pelo parlamento, dando origem ao Estado de Bem-Estar Social Britânico. O NHS – sigla para Serviço Nacional de Saúde, ou National Health Service – foi criado neste contexto. Foi uma profunda reforma no Estado britânico e inspiraria, décadas depois, a criação do nosso SUS.
Quando “O Caminho da Servidão” chegou aos Estados Unidos, rapidamente o livro se transformou num best-seller inesperado, elevando Hayek ao posto de grande referência na defesa da limitação do Estado. No prefácio da primeira reimpressão, Hayek se surpreende com a repercussão global daquela obra escrita para o debate público britânico, sem maiores pretensões. Além de superar limites de espaço, o livro de Hayek rompeu também as barreiras do tempo. Até hoje, “O Caminho da Servidão” é lido e elogiado por todo o planeta. É uma das mais influentes obras políticas da história humana. Poucas décadas depois, Margaret Thatcher e Ronald Reagan chegariam ao poder fazendo referências constantes ao livro e seu autor.
Assim como Hayek ajudou a fundar uma nova direita, Beveridge contribuiu para o surgimento de uma nova esquerda. Cerca de 40 anos após a criação do NHS, o Partido Liberal britânico se fundiu com o Partido Social Democrata, dando origem ao atual Partido Liberal Democrata, terceira força da política local. Nos Estados Unidos, a visão de Beveridge foi incorporada ao Partido Democrata. Uma aliança similar deu origem ao PSDB no Brasil. Ao comentar o fato de o Estado de Bem-Estar Social britânico ter surgido dentro do Reform Club, o grande liberal José Guilherme Merquior indagava: onde mais poderia ser? Na visão de Merquior, políticas sociais são típicas de um Estado liberal, consequência natural da tradição de pensamento inspirada no século 20.
Dos anos 1940 para cá, sistemas de saúde pública e políticas de redistribuição se tornaram cada vez mais comuns. O próprio Hayek expandiu sua visão sobre as funções legítimas do Estado nos livros seguintes, mas morreu sem esconder seu desprezo por Beveridge. Numa entrevista, chegou a dizer que o ex-colega não entendia nada de economia e precisava de ajuda dos outros para escrever sobre assuntos complexos.
De fato, Beveridge nunca foi capaz de arranhar a profundidade de Hayek como pensador, mas é difícil negar que ele ganhou o debate. A expansão do Estado de Bem-Estar Social coexistiu com uma expansão vigorosa da democracia e da liberdade. Independentemente do vencedor, o debate entre Hayek e Beveridge não deveria ter sido esquecido, pois nos fornece valiosas lições sobre os debates internos que sempre foram comuns na tradição liberal. Num país onde a história do liberalismo é esquecida e poucos se lembram da diversidade que sempre foi comum a esta tradição de pensamento, é importante rememorar esta história.