Se a eleição for mesmo a festa da democracia, como garante um clichê da imprensa, as últimas pesquisas indicam que o segundo turno será como um aniversário de Caetano Veloso com show de Lobão. Foi essa a minha conclusão após ler o recente e elogiado “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Ambos são cientistas políticos da Universidade de Harvard e estudaram o que mata as liberdades políticas na nova ordem iniciada após a Guerra Fria.
Nos últimos 30 anos, a democracia perdeu o costume de morrer em rompantes. Golpes militares e revoluções proletárias saíram de moda. Nas últimas décadas, “a maioria das rupturas democráticas não foram causadas por generais e soldados, mas pelos próprios governantes eleitos”, segundo Levitsky e Ziblatt. A lista de exemplos é longa o suficiente para merecer respeito: Venezuela, Peru, Rússia, Turquia, Hungria, Filipinas e Polônia, dentre outros.
Para os autores, as democracias começam a morrer quando negligenciamos as regras informais que as sustentam. Duas são especialmente importantes: tolerância e autocontenção. Os agentes políticos devem respeitar seus adversários como competidores legítimos e utilizar suas ferramentas institucionais com cautela. O que Fernando Haddad e Jair Bolsonaro oferecem, em essência, é o oposto disso.
Caso qualquer um dos dois seja eleito, o presidente da República será tratado pelas oposições como um canalha com quem não se negocia. O petismo verá como grave traição qualquer voto favorável a um governo Bolsonaro, mesmo se o projeto for positivo para o país. O mesmo tende a acontecer caso o PT seja eleito.
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Bolsonaristas e petistas compartilham uma rejeição expressiva e um discurso extremamente agressivo ao tratar de adversários. A combinação não se dá por coincidência.
Se você trata seus adversários como sociopatas politizados, é esperado que os ofendidos odeiem quem lhes xinga. Quem acusa rivais de ódio aos pobres ou aliança com o Comando Vermelho não pode esperar que a oposição responda com negociações diplomáticas.
Não só a oposição deslegitimará o presidente. O atentado a Bolsonaro e a prisão de Lula deram a ambos um desejo de revanche. Basta prestar atenção no que dizem intelectuais do PT ou Olavo de Carvalho para notar os traços comuns. Segundo ambos, o candidato que apoiam deve ter a eliminação de certa oposição como prioridade desde o início do governo.
A eleição de Bolsonaro ou Haddad provavelmente nos levará a um governo que deslegitima a oposição enquanto a oposição deslegitima o governo.
O segundo ato na morte da democracia decorre quase naturalmente a partir deste ponto. Quando se luta com um cretino que quer nos destruir, vale tudo. A autocontenção será vista pelas militâncias como fraqueza. Nesta guerra, provavelmente sobraria uma bala perdida na cabeça do país.
Em meio à ausência de autocontenção, qualquer debate sobre reformas está comprometido de antemão. Todo ajuste fiscal contrariará interesses localizados – especialmente se for sério e socialmente inclusivo, como o que o Brasil precisa. Quando tais interesses mui poderosos encontrarem guarida em oposicionistas dispostos a jogar baixo para comprometer o governo, o estrago estará feito.
Crises fiscais têm sido mais um ingrediente importante para rupturas democráticas na América Latina. O caos macroeconômico, geralmente causado por ciclos populistas, esteve na origem de muitos golpes na história do subcontinente. Aos interessados, escrevi sobre os ciclos populistas numa coluna passada nesta mesma Gazeta do Povo.
Deve o leitor reparar que ainda não citei o posicionamento político mais recente dos candidatos, assim como suas declarações polêmicas das últimas semanas. O medo pela democracia brasileira já seria justificado mesmo ignorando boa parte dos bodes que estão passeando pela sala.
Bolsonaro nunca negou a que veio. Quem diz há anos que “numa democracia, a minoria tem que se curvar à maioria” certamente não é um leitor entusiasmado de Tocqueville. Autogolpes e constituintes irregulares podem até soar improváveis no contexto atual, mas deixam clara a disposição de mandar às favas a autocontenção.
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Se Haddad acredita mesmo que imprensa e Judiciário prenderam um inocente por ter colocado pobres na universidade, o esperado é que ele tente virar do avesso as duas instituições. Nenhum petista teria outra opção. Ou um governo Haddad prioriza a soltura de Lula e dificulta novas prisões nos processos que restam ao ex-presidente, ou a militância do PT logo se voltará contra um presidente do próprio partido. Freios, contrapesos e instituições de controle ficam em segundo plano, agora que o proprietário do PT está preso.
Desenhado o desastre, resta aos democratas sobre o perigo de um segundo turno entre os polos de ódio e sectarismo que tomaram o debate público. Uma coalizão de largo alcance, capaz de diálogos sadios, nunca foi tão necessária, dada a necessidade de reformar o Estado brasileiro, mas nunca esteve tão distante.
O pesadelo vivido desde o estelionato eleitoral de 2014 deveria ter escancarado os males da falta de tolerância e autocontenção, assim como da importância de não subestimar as reformas fiscais. Infelizmente, caminhamos a passos largos em direção a um eterno retorno.
Restam pouco menos de três semanas para o dia 7 de outubro. Até lá, gostaria de ver um movimento de abandono das vaidades em busca de uma alternativa viável. Bolsonaro precisa do PT e o PT precisa de Bolsonaro, pois um terceiro nome provavelmente venceria os dois grupos mais rejeitados do país num eventual segundo turno.
Democratas do Brasil, uni-vos! Se demorarmos, pode ser tarde demais.
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