A cada dia, e especialmente a cada nova decisão do STF, cresce a probabilidade de Lula sair candidato em 2022. O resultado é mais do mesmo: a economia brasileira tende se afundar no processo que muitos analistas chamam de “dominância política”. Indicadores econômicos tendem a refletir menos os fenômenos puramente econômicos, movendo-se de acordo com o jogo político-eleitoral.
Não é uma novidade. Estamos presos nessa dinâmica desde, no mínimo, 2015. Alguns diriam que desde 2013. Outros apontariam que a mesma história se repete desde 1500. Não dá para negar que o exagero tem alguma dose de verdade. “A história da América Latina parece se repetir infinitamente em ciclos irregulares e dramáticos”, escreveram Dornbusch e Edwards em 1989, num famoso artigo sobre o populismo econômico latino-americano – que, inclusive, transformei em tema de uma das minhas primeiras colunas na Gazeta, em 2018. Ivan Lessa escreveu coisa parecida com palavras bem cariocas: “De 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”.
O cenário mais provável para 2022 é a repetição de 2018 e 2014. Tem tudo para ser mais um ano de instabilidade no noticiário financeiro. Os exatos contornos dependem de respostas que ainda não temos. Mas é possível especular sobre elas.
No front eleitoral, tirar conclusões agora é não aprender com as eleições anteriores. Não pretendo endossar o coro anticientífico daqueles que negam a relevância das pesquisas e até denunciam fraudes sem prova, mas é preciso saber ler os resultados. A eleição de 2018 mostrou que a antecedência é inimiga da precisão, especialmente no segundo turno. Por mais que Lula apareça em muitas pesquisas com rejeição inferior a adversários como Luciano Huck, os números dizem pouco sobre a intensidade deste sentimento.
Candidatos amplamente rejeitados geram uma reação no eleitorado quando aparecem bem nas pesquisas. O sucesso de Lula deve mobilizar seus opositores na sociedade civil. O mesmo vale para Bolsonaro, também rejeitado por parte relevante dos brasileiros. Essa conjunção de fatores poderia levar ao surgimento de uma terceira via, mas este não parece o resultado mais provável. Os pretendentes ao posto de alternativa ao petismo e bolsonarismo – Doria, Huck, Ciro e outros – parecem pouco competitivos a esta altura.
Isso não significa que a mobilização do eleitorado contra candidatos amplamente rejeitados deixará de ocorrer. O mais provável é que o eleitorado anti-lulista se mobilize em torno de Bolsonaro, enquanto o anti-bolsonarista deve se aproximar de Lula. A rejeição de um fortalece o outro. Paradoxalmente, os supostos inimigos mortais se ajudam mutuamente. As pesquisas de opinião pública fortalecem esta impressão. Quando um cresce, o outro também cresce. Muito se fala sobre o impacto da facada para a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas de 2018, mas poucos reparam que o atual presidente cresceu justamente quando Haddad entrou no jogo.
Essa dinâmica tem uma consequência no cenário econômico. Em meio à já citada dominância política, o impacto das eleições na Bolsa, dólar e risco-país terá relação direta com a agenda de Lula e Bolsonaro. Quanto a isso, há mais incerteza do que os militantes de ambos os lados gostariam de acreditar.
Depois de terceirizar suas propostas econômicas para o “Posto Ipiranga” em 2018, Bolsonaro mostrou disposição para contrariar Paulo Guedes, especialmente nos últimos meses. Não sabemos qual será a postura do atual presidente em 2022.
A incerteza em torno das propostas de Lula é ainda maior – muito maior, eu diria. Há quem aposte num retorno a 2002, tempos de paloccismo e “Carta ao Povo Brasileiro”, que na prática foi uma carta aos detentores de títulos da dívida pública. Para acreditar nesse cenário, é preciso ter uma boa dose de fé. Sobram analistas torcedores, que não toleram Bolsonaro e esperam de Lula uma postura moderada na economia.
O paloccismo foi um fenômeno passageiro. Não houve mudança estrutural na mentalidade econômica do PT. Tanto que, já no primeiro ano de governo, o partido se dividiu, dando origem ao Psol. Petistas históricas, como a economista Maria da Conceição Tavares, criticavam o primeiro mandato de Lula sob aplausos da militância.
Os acertos de Lula duraram pouco. Assim que Palocci caiu, o Ministério da Fazenda foi entregue a Guido Mantega. Pouco a pouco, Mantega mudou a equipe econômica de Palocci. Especialmente a partir da crise de 2008, o desenvolvimentismo passou a dar o tom do governo. Deu no que deu.
A partir do impeachment, o PT apenas aprofundou o discurso que Dornbusch e Edwards (aqueles mesmos que aparecem no segundo parágrafo desta coluna) classificariam como populismo macroeconômico latino-americano. Fernando Haddad concorreu em 2018 minimizando a necessidade de mudanças na Previdência e prometendo revogar as reformas aprovadas por Temer. O candidato petista até tentou mudar o discurso no segundo turno, mas fez muito pouco e muito tarde.
O que sustenta as especulações sobre a volta do paloccismo num novo governo Lula? Ao observar o discurso do PT, não vejo qualquer sinalização neste sentido. No cenário econômico, porém, alguns fatores podem incentivar a moderação.
Uma virtude pouco comentada do teto de gastos é dificultar sua substituição por alternativas fiscalmente irresponsáveis. O teto serve como âncora para as expectativas de agentes econômicos. É um seguro contra a irresponsabilidade. Caso um presidente tente substituir o teto por um populismo qualquer, as expectativas mudariam brusca e repentinamente. O dólar dispararia junto com o risco-país. Os brasileiros rapidamente sentiriam os efeitos no preço da gasolina, alimentos e outros produtos, gerando uma pressão por estabilidade econômica. Desta forma, mesmo que um novo presidente tente mudar o teto, os incentivos jogariam contra ele.
Dado o cenário da pandemia, o risco fiscal deve seguir ditando os movimentos do mercado financeiro. Neste caso, o sucesso eleitoral de um discurso irresponsável tende a gerar a repetição do cenário de 2002. Os mais velhos devem lembrar do que aconteceu com dólar, risco-país e inflação naquela época. Ninguém queria comprar títulos públicos com vencimentos posteriores à eleição. Lula moderou a própria agenda econômica naquela época porque, como diria o famoso chavão de Thatcher, não havia alternativa. Tanto que, assim que a conjuntura permitiu, o petista voltou à velha irresponsabilidade de sempre.
Na melhor das hipóteses, Lula pode até adotar propostas fiscalistas e pró-mercado por conveniência, mas é improvável que ele sustente essa agenda ao longo do tempo. No fundo, o paloccismo acabou rápido porque nunca existiu. Foi apenas fruto da necessidade de acalmar o setor privado numa conjuntura específica. No campo das ideias, não houve mudança.
Apesar de vago em propostas econômicas, o discurso de Lula após a anulação das suas condenações apenas reforçou a conclusão acima. Um dos raros pontos concretos do discurso foi a defesa de um aumentos dos investimentos como ferramenta para reduzir a dívida pública. Foi o exato oposto do que o próprio Lula fez nos tempos de paloccismo. De 1947 até 2019, segundo dados do Observatório da Política Fiscal do Ibre/FGV, os investimentos públicos do governo central como porcentagem do PIB chegaram ao seu menor valor em 2003 e 2004. Na mesma época, a dívida pública começou a cair. Portanto, Lula reduziu a dívida pública com cortes draconianos nos investimentos, exatamente o oposto do que propõe hoje.
Das duas, uma: ou Lula nunca entendeu a política econômica do seu primeiro mandato, ou ele nunca concordou com a gestão Palocci. Não há terceira explicação para uma contradição tão gritante. Eu gostaria de imaginar a possibilidade do PT voltar àqueles tempos. Uma esquerda economicamente responsável faz falta ao Brasil. Infelizmente, a torcida não pode se sobrepor aos fatos. A Lula o que é de Lula: o poderoso chefão do petismo nunca nos deu motivos para acreditarmos numa volta ao paloccismo. Só uma grande dose de boa vontade justifica a crença num PT responsável. Quando uma análise depende de tamanha boa vontade em relação a políticos, a reação mais prudente é desconfiar do analista.
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