A questão negra é a maior mancha da história americana. Os pais fundadores da América, em belos discursos, prometeram criar uma terra de liberdade. Durante o primeiro século dos EUA como nação independente, essa promessa atendeu apenas aos interesses dos brancos livres – negros, por outro lado, ainda viviam como escravos em grande parte do país.
Por lá, a abolição veio através de uma guerra sangrenta e sem uma política adequada de indenização aos ex-escravos. O segundo século da história americana foi melhor, mas não muito. As políticas de segregação, especialmente em estados do sul, foram uma barreira na busca dos negros pelo sonho americano. Mesmo nos locais onde negros podiam viver com certa liberdade e prosperidade, grupos como a famosa Ku Klux Klan perseguiam os afro-americanos. É famosa a história da “Wall Street negra”, um grande centro comercial e financeiro que havia em Tulsa, Oklahoma, destruído em 1921 durante um ataque de supremacistas brancos.
Não por acaso, o Dr. Martin Luther King Jr frequentemente aparece como o último dos pais fundadores, responsável por começar a corrigir a grande lacuna na obra de George Washington, Thomas Jefferson e outros. Até mesmo organizações conservadoras, como a Heritage Foundation, comparam o Doutor King aos pais fundadores da América.
O Doutor King não era chamado assim apenas por respeito daqueles que o admiravam. Ele, de fato, era doutor em teologia. Inserido da tradição de grandes oradores negros do cristianismo americano, King inspirou multidões até ser assassinado em abril de 1968, num hotel do Tennessee. Era um homem que falava sobre Deus, liberdade e sobre o que havia de bom na América, sem deixar de apontar o que estava errado naquele tempo.
Através da influência de pessoas como Martin Luther King Jr., o terceiro século da história dos EUA como nação independente foi aquele no qual, finalmente, o sonho dos pais fundadores começou a se realizar. Uma terra de liberdade para todos, inclusive para os negros, começa a se desenhar a partir dali.
Isso não significa que o trabalho terminou. Apesar do fim da escravidão e da segregação, a herança do passado ainda pesa. Em 2016, de acordo com dados do censo americano, a renda domiciliar mediana de um americano negro estava ao redor de U$ 39.500 anuais, enquanto o branco mediano desfruta de uma renda 65% maior – cerca de U$ 65.000 anuais.
Um estudo recém-publicado nos ajuda a entender quão grande é o problema
Frios cálculos de mediana dizem pouco sobre uma questão tão complexa quanto a desigualdade econômica racial. Alguns críticos podem argumentar que, numa economia de mercado, é natural que pessoas diferentes tenham rendas diferentes. Mas a história dos EUA mostra que não há nada “natural” no processo que construiu a desigualdade observada nos dias de hoje. A escravidão foi uma política pública. A segregação foi uma política pública. E um estudo recém-publicado mostra que, infelizmente, o buraco é mais embaixo.
Numa das últimas edições do Quarterly Journal of Economics – um periódico cuja relevância na economia pode ser comparada à de revistas com a da Science ou Nature nas ciências naturais -, economistas de Harvard e do Census Bureau, órgão responsável pelo censo americano, publicaram um artigo revolucionário sobre a dimensão econômica do racismo americano.
Usualmente, os estudiosos possuem apenas dados sobre o racismo em um ponto do tempo, que refletem medidas agregadas sobre uma cidade, estado ou país – a já citada renda mediana de brancos e negros é um exemplo. Recentemente, um novo tipo de dado se tornou possível: os dados longitudinais, agregados ao nível do indivíduo.
Saindo do economês para o português, podemos dizer que esses dados permitem analisar a renda de um indivíduo em relação à renda da família dele durante a sua infância. Com esse tipo de dado, é possível abordar o racismo econômico de forma mais direta, comparando brancos de família pobre com negros de família pobre. Em outras palavras, é possível dissociar a questão social da racial.
O estudo recém-publicado por Raj Chetty e co-autores no Quarterly Journal of Economics é um dos primeiros que pode contar com esse tipo de tecnologia para fazer uma análise desta questão. Os autores observaram a situação econômica da geração nascida entre 1977 e 1983, considerando as condições de cada família naquele período e a situação dessas pessoas hoje, quando já são adultos com capacidade de trabalhar.
As conclusões mostram uma imensa desvantagem dos negros americanos.
Ao ler o estudo, um número me foi particularmente chocante. Entre os negros criados em famílias que estavam entre as 20% mais ricas dos EUA, 18% conseguem se manter entre os 20% mais ricos quando alcançam a idade adulta. Por outro lado, 16,8% acabaram caindo tanto que chegaram à adulta entre os 20% mais pobres do país. Ou seja, para um negro privilegiado, nascido numa família que está no topo da distribuição de renda americana, a probabilidade dele continuar entre os mais ricos é parecida com a dele descer até os mais pobres.
Para os brancos, a situação é oposta. Cerca de 41,1% dos que nasceram entre os 20% mais ricos mantem o mesmo status social na idade adulta. Apenas 8,7% descem para os 20% mais pobres.
Por outro lado, um negro que nasce entre os 20% mais pobres tem 2,5% de probabilidade de alcançar os 20% mais ricos na idade adulta. Essa mesma probabilidade chega a 25,5% entre asiáticos, o que mostra o imenso poder do racismo contra negros.
Outro ponto particularmente chocante é que, apesar dos latinos serem mais pobres de modo geral, eles não são diferentes dos brancos em termos de mobilidade social. Isto é, um latino que nasce pobre e um branco que nasce pobre possuem mais ou menos as mesmas oportunidades de ascender socialmente ao longo da vida. A desvantagem, em termos de mobilidade social, é principalmente dos negros, que enfrentam obstáculos incomparavelmente maiores. Esta evidência nos ajuda a ver quão poderoso é o racismo.
Importantes diferenças de gênero
Curiosamente, a diferença entre os homens é maior que entre as mulheres. Em média, uma mulher branca que nasce em família pobre e uma mulher negra de mesma origem, em geral, tem uma situação parecida quando chegam à vida adulta. Ou seja, essa dimensão econômica do racismo não é tão nítida entre mulheres.
No caso dos homens, o oposto acontece. Um homem negro e outro branco, mesmo quando nascem em contextos sociais parecidos, chegam a lugares muito diferentes na vida adulta – em geral, o homem branco tem mais oportunidade de ascender socialmente.
Esta mesma realidade se manifesta em outros indicadores. Mulheres negras e brancas de mesma origem social, em geral, não se tornam adultas diferentes em termos de horas trabalhadas ou empregabilidade. Já os negros trabalham menos horas e ficam mais desempregados na comparação com brancos que tiveram origem social similar.
Não por acaso, esta situação se repete mais uma vez quando olhamos para as taxas de formação no ensino médio, na faculdade ou para taxas de encarceramento. Um branco nascido pobre tem menos probabilidade de ser preso e maior probabilidade de completar colégio e faculdade, na comparação com um negro pobre. Esta disparidade não aparece entre mulheres. Talvez os resultados referentes a renda sejam meras consequências das diferenças nesses outros indicadores.
Em média, mulheres brancas continuam sendo mais ricas que as mulheres negras, mas isto acontece porque as negras, em média, saem de uma posição menos vantajosa. Quando se compara negras e brancas nascidas num mesmo contexto social, a diferença de resultados na idade adulta é pequena.
No caso de homens negros, dois indivíduos nascidos no mesmo contexto social chegam a resultados completamente diferentes na idade adulta.
O estudo recém-publicado por Raj Chetty e co-autores no Quarterly Journal of Economics é apenas um passo inicial num campo de pesquisa que tende a crescer muito nos próximos anos. Através desses estudos vindouros, será possível formular políticas públicas que de fato acabem com o trabalho incompleto dos pais fundadores. Pelo que podemos ver, essas políticas públicas precisam olhar com muito carinho para a exclusão social do homem negro.
Os Estados Unidos da América possuem uma história muito bonita, apesar da vergonhosa mancha de racismo que nunca foi solucionada. Não há nada natural na desigualdade entre negros e brancos nos EUA. uperar a desigualdade racial deveria ser uma das grandes prioridades nacionais. A ciência das melhores universidades do planeta pode ajudar os EUA a alcançar o sonho idealizado pelo Doutor King em seu famoso discurso de 1963 – uma situação onde a cor importa menos do que o caráter. Só assim será possível concretizar o ambiente de liberdade que Thomas Jefferson e George Washington projetaram para esta grande nação.
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