Duas ingenuidades perigosas têm circulado pelo debate público sobre o #BrequeDosApps. Uma delas, à esquerda, acredita que uma regulação mais pesada, como tabelamento de preços e exigência de vínculo trabalhista para entregadores, é a solução necessária contra a precarização criada pelo neoliberalismo malvado. Outra, à direita e pretensamente liberal, retrata os apps como coitados que nem sequer geram caixa e os entregadores como reclamões de barriga cheia.
As duas ingenuidades são perigosas e erradas. Como ocorre a tudo o que é ingênuo, falta experiência a estas ideias. Se elas entrassem em contato com perspectivas diferentes, deixariam de ser narrativas simplórias com pouco poder de explicar a sociedade. Felizmente, colunas recentes de Rodrigo Zeidan, na Folha, e de Pedro Nery, no Estadão, avançaram rumo a um debate mais racional.
Rodrigo Zeidan formulou um bom argumento econômico, coisa rara num ambiente intoxicado pelos gritos de guerra. Na visão dele, os aplicativos possuem grande poder de barganha nas negociações com entregadores, pois poucas empresas concorrem no setor. De fato, é um mercado concentrado. Quando assisto relatos de brasileiros que se endividaram para comprar uma moto e trabalhar nos apps, vejo pessoas incapazes de contrabalancear o arbítrio de grandes corporações.
Pedro Nery, por sua vez, observou danos que a criação de um vínculo trabalhista poderia trazer aos entregadores. Um considerável aumento da tributação seria apenas um dos problemas. Vale comentar também a perda de flexibilidade por parte de quem costuma trabalhar em 2 ou 3 apps e decide sobre a própria jornada de trabalho. Por sinal, como Nery lembra, o próprio movimento dos trabalhadores de apps faz questão de se colocar contra “regulações que prejudiquem os entregadores”.
As duas ingenuidades que cito na abertura do texto apresentam uma resposta pronta sem refletir seriamente sobre a situação dos entregadores e empresas. Criar vínculos trabalhistas é ideia de quem não pensou muito sobre esse país onde a grande maioria dos trabalhadores pobres trabalha sob contrato informal. O protecionismo trabalhista frequentemente prejudica aquele que pretende ajudar.
Já a ingenuidade liberista, que se considera liberal, acha que essas relações desiguais fazem bem à sociedade, segue o jogo, tudo está lindo. Os aplicativos dão prejuízo, mas não são coitadinhos. Estão em fase de expansão da operação e contam com investidores endinheirados, ávidos para lucrar quando dominarem um mercado consolidado. O iFood, por exemplo, usa o dinheiro destes investidores para comprar concorrentes e ganhar poder de mercado. Um dos objetivos de aquisições do tipo é justamente aumentar o poder de barganha da empresa na negociação com os entregadores.
O leitor deve ter reparado que uso a palavra “liberista”, termo cunhado por Benedetto Croce e introduzido por José Guilherme Merquior no debate público brasileiro. Eu me refiro aos liberais com uma visão estreita, restrita à economia. Afinal, não há nada de liberal em discursos antissindicais, como o defendido por Samy Dana.
Eis um fato: o setor de entregas por aplicativo é fortemente baseado em economias de escala e uma empresa precisa produzir em grande quantidade para sobreviver à concorrência. Neste caso, o mecanismo de mercado deve levar a uma concentração do setor em poucas marcas. Dada esta realidade, o elevado poder de barganha dos apps não parece ser um cenário passageiro. É uma realidade que veio para ficar.
Sindicatos são especialmente úteis neste cenário. Ao centralizar a negociação, trata-se de um instrumento que aumenta o poder de barganha dos trabalhadores. Ok, reconheço que sindicatos frequentemente caem no peleguismo, ignoram os interesses reais dos representados e são capturados por partidos políticos. Mas, no caso dos apps, há uma oportunidade para mudar esse cenário, especialmente após o fim da contribuição sindical obrigatória, aprovado na reforma trabalhista.
A natureza descentralizada do trabalho por aplicativo poderia levar ao surgimento de vários sindicatos diferentes que negociam juntos e concorrem pela filiação de cada trabalhador, diminuindo a probabilidade de captura partidária e peleguismo. Inicialmente, valeria a pena tentar a saída do voluntarismo, incentivando que os próprios entregadores tomem essa atitude. O Estado sequer seria necessário. Caso exista um problema de coordenação, outra saída é criar mecanismos de “nudge” que incentivem a filiação sindical sem impor uma escolha ao entregador. Não há nada de antiliberal no que proponho. Pelo contrário, não há nada mais liberal do que a livre associação de trabalhadores.
Por outro lado, é preciso olhar o problema além da negociação salarial. Se a ingenuidade liberal adota um discurso antissindical, a ingenuidade socialista não percebe que a verdadeira mudança não passa pela regulação das escolhas que os entregadores fazem hoje, mas da expansão do cardápio de escolhas disponíveis a eles.
A situação degradante à qual muitos entregadores se submetem é fruto de um país que convive com um alto desemprego há cinco anos. O atraso educacional também é parte da explicação. Se os entregadores tivessem outras opções, eles poderiam simplesmente trabalhar noutro setor. A diminuição da oferta de entregadores faria subir a remuneração nos aplicativos.
Sendo assim, ao invés de propor legislações específicas para o trabalho por aplicativos, faz mais sentido repensar o Estado de Bem-Estar Social, substituindo velhas políticas por novas. Uma renda mínima, por exemplo, daria maior poder de barganha ao trabalhador em situações deste tipo, sem trazer consigo os danosos efeitos colaterais do protecionismo trabalhista. Novas formas de trabalho exigem novas formas de assistência ao trabalhador.
A bem da verdade, muitos socialistas, liberais e conservadores já estão revendo ingenuidades do passado e pensando em soluções para o futuro. O debate avançou. Infelizmente, a polarização impede avanços maiores. A rixa observada durante a greve dos entregadores exemplifica o que digo. O Brasil tem muita tese, muita antítese e pouca síntese – se persistirmos nesta postura, o #BrequeDosApps será o menor dos nossos problemas.
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