O ditador Getúlio Vargas conseguiu a façanha de dar um golpe de Estado e ainda voltar a ser presidente do Brasil pelas urnas.| Foto: Domínio público

Ciro Gomes foi às redes sociais louvar “o legado inesquecível do maior dos brasileiros, Getúlio Vargas”. Segundo Ciro, o ídolo maior do varguismo foi “o melhor presidente” e “a mais exuberante personalidade política” de nossa história.

CARREGANDO :)

Não é uma novidade na política brasileira. O ex-presidente Lula, em declaração bastante semelhante, chamou Fidel Castro de “maior de todos os latino-americanos”. Mais recentemente, o presidente Jair Bolsonaro classificou Carlos Alberto Brilhante Ustra como “herói nacional”.

Ambos os casos são frequentemente discutidos. O absurdo discurso de Bolsonaro sobre a ditadura militar gera polêmicas cada vez mais frequentes. De modo análogo, a oposição a Lula criticava incessantemente a sua simpatia por tiranos da esquerda latino-americana.

Em 2018, por exemplo, não era difícil encontrar quem defendesse o voto em Ciro Gomes por rejeitar quem passa pano para ditadores. Mas qual a diferença entre as passadas de pano de Ciro, Bolsonaro e Lula? A essência é a mesma: políticos relativizando o autoritarismo político em nome de conveniências tribais e ideológicas.

Publicidade

Em termos práticos, Vargas foi um ditador para ninguém botar defeito. Os carniceiros da ditadura militar tiveram com quem aprender. O DOPS, órgão encarregado por boa parte da tortura nos anos 1960 e 1970, também integrava o sistema de repressão varguista. Getúlio tinha até um Ustra: Filinto Müller, brutal chefe da polícia política durante o Estado Novo. Entre 1969 e 1973, os anos de chumbo que se seguiram ao AI-5, a Arena – partido de sustentação da ditadura – era presidido pelo mesmo Filinto Müller.

A brutalidade varguista não se limitou ao Estado Novo. Ainda em 1936, Graciliano Ramos foi preso sem acusação formal. Ciro Gomes gosta de traçar analogias entre Jair Bolsonaro e o nazi-fascismo. Getúlio Vargas, por outro lado, se adequa muito melhor à comparação.

Na Constituição de 1934, o Estado brasileiro se comprometia a promover a “educação eugênica”, referindo-se à famosa pseudociência racista. Getúlio, que costumava citar os nazi-fascistas europeus como fontes de inspiração, abraçava racismo típico daqueles tempos. Juntando estes ingredientes com uma boa dose de antissemitismo, a entrega de Olga Benário nas mãos de Hitler e outros casos mais, o retrato que se forma é do chefe de Estado mais fascista que o Brasil já teve. É o melhor, segundo Ciro Gomes.

Ciro sabe disso tudo, mas ignora. Leonel Brizola, fundador e símbolo maior do PDT, era inequívoco na sua visão sobre o período: "às vezes nós pensamos: bendita ditadura", disse Brizola na sua última campanha presidencial, em discurso registrado pela Folha de São Paulo. Getúlio era “um homem bom” e “fez muito bem em ter assumido aquele poder discricionário", na visão de Brizola. “Ter assumido poder discricionário”, no contexto da frase, é eufemismo para “comandar um golpe de Estado”.

É provável que Ciro, caso confrontado, diga que Getúlio não pode ser reduzido apenas a violações aos direitos humanos, pois seu impacto na história do país é muito mais profundo. Na mesma linha, cabe notar que Stalin é maior do que seus expurgos e genocídios, pois comandou o Exército que mais danos causou à Alemanha de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Nenhum feito, econômico ou militar, torna tolerável a repressão política.

Publicidade

Pai dos pobres ou parceiro dos ricos industriais?

Ignoremos, porém, todos os argumentos democráticos e humanitários das críticas a Getúlio Vargas. O que sobra, então? Os varguistas dirão que sobra o pai dos pobres, o nacionalista que estruturou um novo país e protegeu os trabalhadores. É o que diz o próprio Ciro Gomes.

Esta visão ressalta, acima de tudo, o atraso no pensamento econômico de Ciro Gomes e grande parte da esquerda brasileira. Para eles, o legado econômico de Getúlio, com intenso crescimento do PIB e da indústria, foi um sucesso inigualável.

Rudiger Dornbusch, finado economista alemão do MIT, incluiu um artigo sobre Getúlio Vargas no famoso livro que editou sobre o populismo econômico latino-americano, que ele define como “uma abordagem à economia que enfatiza crescimento e redistribuição da renda, dando menor importância aos riscos da inflação, financiamento de déficits, restrições externas e reações de agentes a intervenções agressivas nos mercados”.

Ciro e parte importante da esquerda estão presos a este populismo econômico. Enquanto não fizerem uma autocrítica sobre o assunto, ele e seu PDT representam um risco à estabilidade do Real, pois o populismo econômico latino-americano não combina com um país moderno. Não por acaso, tal concepção tem sido progressivamente abandonada pela responsável esquerda chilena.

O varguismo é bem definido pelo populismo econômico descrito por Dornbusch, mas um aspecto crucial merece destaque. A ênfase de Getúlio na redistribuição de renda era principalmente retórica. Dois trabalhos acadêmicos recentes mostram como o governo Vargas foi desastroso para o combate à desigualdade.

Publicidade

O primeiro, e mais importante, é a tese de doutorado de Pedro Herculano Souza, sociólogo do IPEA, depois transformada no livro “Uma história de desigualdade”. Com dados da Receita Federal, nunca antes analisados, Pedro é convincente em demonstrar que a parcela do PIB apropriada pelos mais ricos atingiu um dos seus ápices durante a primeira parte da Era Vargas.

O segundo trabalho, de certa forma, explica os resultados do primeiro. Trata-se do artigo “Educação para as elites, financiamento e ensino primário no Brasil, 1930–1964”, recém-publicado pelo economista Thomas Kang, com uma robusta análise de dados que demonstra como a educação nunca foi real prioridade de Vargas. Em detrimento das escolas, Getúlio preferia subsídios para empresários amigos.

É preciso olhar além do PIB

Industrialização e investimento em infraestrutura. Estas são as duas bases do populismo econômico de Getúlio Vargas – é o exemplar mais comum da espécie. A princípio, não são bases ruins. Ambos aumentam a produtividade nacional.

O problema está no modo como Getúlio executava sua agenda. Seu intervencionismo levou a desastres em diversos campos da política econômica. A política de subsídio aos preços do café, que chegou a queimar sacas para enriquecer produtores, é um notório desastre, típico dos governos Vargas. O mesmo pode ser dito sobre o controle tarifário que destruiu o sistema de bondes que cruzava São Paulo no início do século, e faz muita falta numa capital famosa pelo trânsito. A insegurança jurídica gerada por essa política foi bem analisada na tese de mestrado de Marcelo Jourdan, da FGV carioca.

Quanto aos investimentos em infraestrutura, é verdade que Getúlio os elevou, alcançando alto crescimento no curto prazo. Mas é só o PIB que importa?

Publicidade

O investimento público a qualquer custo invariavelmente será pago por alguém. Não existe almoço grátis, nem obra grátis. Um impulso imediatista no PIB no curto prazo tende a cobrar seu preço, principalmente para populistas que abusam das restrições econômicas.

Em suas duas passagens pela presidência, Vargas entregou ao sucessor um país com inflação descontrolada. Isto, inclusive, explica parte da concentração de renda nas elites, que se protegem melhor contra a alta de preços.

A instabilidade econômica contribuiu para a instabilidade política. Os irresponsáveis anos 1950, nos quais o governo chegou a dobrar o salário mínimo do dia para a noite, sem estudar impacto econômico de tamanha generosidade, ajudam a explicar o golpe de 1964.

Esta deveria ser a grande lição econômica de Getúlio. O populismo tem como legado inevitável a deterioração da cultura política, das instituições econômicas e da própria democracia. O voluntarismo econômico de Vargas pode até acelerar a economia num ano ou outro, mas é terrivelmente incapaz de construir uma democracia sólida. Foi assim que acabamos onde estamos, com uma elite política liderada por Ciro, Lula e Bolsonaro, por gente incapaz de condenar seus autoritários de estimação. Dizem que Getúlio Vargas é o pai do Brasil moderno. Deu no que deu.