Logo de saída, aviso ao leitor: não tenho qualquer opinião sobre o uso de hidroxicloroquina com azitromicina para tratar pacientes de Covid-19 em estágio inicial da doença. No clima polarizado que marca o debate público brasileiro, aposto que muita gente vai ignorar este aviso que faço já na primeira frase do texto.
Afinal, o objetivo desta coluna é expor a falsa defesa da ciência que anda em voga no Brasil. Como debater o argumento em suas nuances é mais difícil do que criar um espantalho, já imagino que muitos me denunciarão por receitar remédios sem ser médico (procure seu médico!). Ou dirão que afirmo a eficácia de um tratamento sem ter capacidade para tal (não afirmo, nem nego!).
Um exemplo de falsa defesa da ciência está na atuação da jornalista Mônica Bergamo, conhecida por seu alinhamento político à esquerda. Nos últimos dias, ela publicou diversas matérias sobre a cloroquina, sempre resumindo estudos médicos.
Se há estudos por trás das matérias, por que afirmo que há falsa defesa da ciência nas matérias? No caso de Mônica, há uma uniformidade da abordagem, que toma posição num assunto que é foco de saudável divergência entre especialistas. E, principalmente, pela profusão de omissões e descrições imprecisas que permeiam o material publicado por Bergamo. Se os erros fossem aleatórios, até poderíamos cogitar que se trata de mau jornalismo. Como vão sempre na mesma direção, cabe refletir se há política por trás do que ela escreve.
Lendo as últimas reportagens de Mônica, noto diversos outros erros similares aos que aqui descrevo. Para não cansar o leitor, vou focar na análise mais profunda de um dos textos publicados ontem. A manchete: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. A notícia viralizou. Foi uma das mais compartilhadas nas redes sociais durante a terça-feira.
O que diz o estudo da Fiocruz? Segundo a reportagem, 81 pacientes em estado grave foram medicados com a cloroquina. Onze morreram. A taxa de letalidade entre o grupo estudado foi de 13%, valor próximo aos 18% registrados num grupo de pacientes chineses que não foi tratado com o remédio. Estatisticamente, a diferença está dentro margem de erro.
Marcus Lacerda, um dos autores da pesquisa, diz à reportagem que: “nosso estudo apenas pode afirmar que a dose alta é muito tóxica”. Curiosamente, a manchete de Mônica vai bem além das palavras do autor. Noutra declaração, Marcus chega a afirmar que a manchete de Mônica seria uma leitura “pessimista” do estudo. O mais correto, do ponto de vista jornalístico e científico, seria divulgar que a pesquisa é inconclusiva.
É importante também notar que a toxicidade da cloroquina é reconhecida por todos os médicos. Por isso, existe a hidroxicloroquina, uma alternativa desenvolvida há anos e menos tóxica. Outra informação que não aparece na coluna de Mônica Bergamo.
No “lapso” mais grave mais de todos, Mônica ignora completamente o protocolo aplicado por hospitais como o Sancta Maggiore, em São Paulo. Primeiramente, todos reconhecem que a cloroquina/hidroxicloroquina é pouco eficaz em casos graves, como os estudados pela Fiocruz.
Segundo o protocolo desenvolvido pelo Dr. Paolo Zanotto para hospitais de São Paulo, o remédio deve ser ministrado em conjunto com a azitromicina e nos primeiros 4 dias de sintomas. No estudo divulgado por Mônica, o remédio é utilizado em casos graves e não há qualquer informação sobre o uso conjunto com a azitromicina. Nada disso é informado pela jornalista.
O leitor não é informado sobre o que dizem os médicos que defendem o uso precoce de hidroxicloroquina com azitromicina – um protocolo que nada tem a ver com o utilizado na reportagem, onde apenas a cloroquina é administrada em pacientes graves. Diversas informações importantes são omitidas pelo texto.
Não é um caso isolado. Um exemplo especialmente chocante está numa matéria sobre Vladimir Zelenko, médico que vem utilizando o protocolo no interior de Nova Iorque e relata ótimos resultados, ainda que sem qualquer rigor científico. A original é do New York Times, mas foi traduzida e republicada pelo Estadão.
Na manchete original do jornal nova-iorquino, Zelenko é descrito como “simple country doctor”, um simples médico do interior. A republicação do Estadão chama o médico de “falso profeta”, uma tradução sem qualquer fidelidade ao original. O jornalista que traduziu a manchete está tomando posição sobre o remédio ao fazer essa referência pejorativa a Zelenko.
Curiosamente, Mônica Bergamo e jornalistas com práticas similares aproveitaram os últimos dias para defender a ciência nas redes sociais. Produzir divulgações científicas preguiçosas, descontextualizadas e enviesadas é justamente o oposto disso. Na prática, se trata de uma falsa defesa com motivações políticas. A ciência é vítima inclusive daqueles que juram defende-la.
Sugiro que a imprensa adote uma estratégia realmente cautelosa e responsável ao noticiar a questão. Que produza divulgações científicas com conclusões divergentes e dê a informação completa ao leitor, contextualizando o que defende cada lado deste debate. Que os cientistas fiquem em paz para pesquisar a melhor forma de salvar vidas sem que um militante os incomode. Infelizmente, temos visto o contrário. Nem um protocolo médico consegue escapar da polarização brasileira.
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