Desde as eleições, o ministro Paulo Guedes promete uma reforma tributária. A proposta ainda não apareceu. Há indícios no ar. O ministro anunciou o responsável por elaborar o projeto, Marcos Cintra, secretário da Receita Federal. Um economista que empunha a mesma bandeira desde os anos 1980: o imposto único.
Originalmente, era uma ideia literal, que pretendia mesmo reunir todos os impostos brasileiros em apenas um, que incidiria sobre as movimentações financeiras. Como tamanha unificação seria inviável, Cintra relativizou sua proposta nos últimos anos. No início do governo, novas versões apareceram em entrevistas. Nos últimos dias, o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, e Flávio Rocha, dono da Riachuelo, também defenderam o imposto único.
As críticas, por falar nelas, não tem sido poucas. Mesmo entre economistas liberais, a proposta sofre forte resistência. Justa resistência, na minha visão. A Câmara, através de Rodrigo Maia, aproveitou a oportunidade para propor sua própria versão da reforma tributária.
Nesta confusão, a posição de Paulo Guedes não é clara. Apesar de integrar a equipe econômica, Marcos Cintra já era próximo de Bolsonaro há alguns anos, por razões políticas. O ministro já elogiou a proposta da Câmara, apesar de prometer alterações. Ele sabe que o imposto único não é bem recebido pela maior parte dos economistas do setor privado.
Já escrevi um texto sobre o assunto aqui na Gazeta. Nele, explico em linhas gerais a proposta de Appy e a guerra de narrativas por trás do debate da reforma. Mas pouco comento sobre economia. E há uma interessante questão que não vem sendo respondida: se o imposto único é mais simples e barato, segundo Cintra, por que é ruim? Boa pergunta.
O que Cintra propõe – e por que é ruim
De acordo com suas declarações até o momento, a reforma tributária proposta pelo secretário da Receita Federal consiste num imposto sobre movimentações financeiras que substituiria tributos federais. Esse imposto teria uma alíquota pequena (fala-se em 2,5%) e seria pago em qualquer transação realizada dentro do sistema bancário.
A princípio, é natural que muitos considerem uma boa ideia. Simplificar a legislação tributária é uma necessidade básica do país. Um sistema tão simples, com uma alíquota tão pequena, soa tentador. Mas a diferença da proposta de Cintra para as outras não está na simplificação. As propostas discutidas no Legislativo também unificam vários impostos em apenas um. O maior diferencial deste modelo seria a cobrança sobre as transações financeiras.
Como ponto de partida, é útil notar que Cintra pretende tributar atividades não-econômicas. Geralmente, pagamos impostos quando produzimos riqueza – seja como renda do trabalho, lucro de empresas ou herança. Mas nem todas as transações financeiras geram riqueza.
No sistema proposto por Cintra, você paga imposto se mandar dinheiro para um irmão que ficou desempregado. E paga também caso divida uma conta com um amigo e decida pagar depois, por depósito bancário. Faz sentido que essa transação não-produtiva seja tributada da mesma forma que a compra de aço para uma fábrica da Fiat?
Nenhum país adota um sistema tributário como esse. Alguns tentaram modelos mais limitados e, depois, desistiram. O motivo foi simples: distorções infernais no sistema de preços. Como ocorre com frequência, a Lei das Consequências Não-Intencionais é crucial para a economia.
O que Marcos Cintra não vê
A Lei das Consequências Não-Intencionais é uma das mais antigas da economia. Em resumo, diz o seguinte: o impacto de uma política pública costuma ser difícil de prever. Como escreveu o francês Frédéric Bastiat num famoso ensaio do século 19, um burocrata não pode se preocupar apenas com o que se vê. O que não se vê é igualmente importante.
Peço desculpas ao leitor pelo tom professoral e trago outro conceito: a neutralidade do sistema tributário. Um sistema neutro é aquele que não distorce as decisões do contribuinte no seu dia-a-dia. Nas faculdades de economia, é comum o exemplo de um antigo imposto inglês, que se baseava no tamanho das janelas dos imóveis para estimar seu valor e, assim, cobrar impostos. Como resultado, as casas construídas no Reino Unido passaram a ter janelas menores. O sistema tributário neutro evita esse tipo de dilema, que incentiva comportamentos nonsense só por causa dos impostos.
A proposta de Marcos Cintra faz exatamente isso. Numa primeira análise, esse sistema acabaria por desbancarizar a economia. Afinal, se as transações pagam imposto no sistema bancário, fará mais sentido lidar com dinheiro vivo. Essa preferência induzida por cédulas é como as janelas britânicas, é um comportamento que não faria sentido sob um outro sistema tributário e indica distorção dos preços de mercado.
Além disso, haverá uma desigualdade tremenda no quanto será pago por cada setor. A indústria precisa realizar muitas transações antes de entregar seu produto. Já um prestador de serviços, como um advogado, precisa de bem menos fornecedores. Esse tipo de desequilíbrio tende a desindustrializar ainda mais a economia brasileira.
De modo geral, é possível apontar diversas vezes o mesmo problema: esse novo sistema tributário, cujo pagamento é cumulativo na produção, distorce o sistema de preços e induz hábitos antieconômicos.
Por que o projeto da Câmara é melhor
O projeto apresentado por Baleia Rossi (MDB-SP), formulado por Bernard Appy e liderado nos últimos meses por Rodrigo Maia é muito melhor que o de Marcos Cintra. Ainda não se sabe se o projeto de Cintra será mesmo o do governo – o anúncio deve vir em breve –, por isso seria bom para o país se Paulo Guedes desistisse da má ideia.
Antes de me aprofundar nesse projeto específico, vale uma pergunta: como seria o sistema tributário ideal? Na minha visão, primeiro a sociedade tem que escolher democraticamente quais tipos de atividade econômica serão tributadas – produção de bens e serviços, renda, patrimônio, etc – e quanto sairá de cada fonte. Num segundo momento, um imposto é criado para cada tipo de atividade econômica que se pretende tributar, e este imposto deve ser tão simples quanto possível, com uma alíquota para todos.
A reforma tributária de Rossi, Appy e Maia simplifica uma das fontes de impostos do Brasil: a produção de bens e serviços. Hoje, cada setor paga impostos diferentes – a indústria tem o IPI, os serviços tem o ISS, dentre outros. Além disso, cada imposto atual tem uma infinidade de casos excepcionais, de modo que ninguém sabe quanto tem que pagar.
Com a reforma que avança na Câmara, cinco impostos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) seriam unificados no novo IBS, sigla para Imposto sobre Bens e Serviços. Este novo imposto teria alíquota única para todos, sem regimes especiais. Além disso, trata-se de um imposto não-cumulativo, que incide apenas sobre o valor adicionado.
O IBS resolveria o problema da tributação de bens e serviços. Resolve a pior parte do sistema tributário brasileiro – e as outras, como o IR, estão longe de serem boas. Depois dessa reforma, ainda seriam necessárias outras, bem menores.
O problema do imposto único é que, ao tentar simplificar demais, ele quebra as caixinhas – isto é, tributa a mesada do pai para o filho da mesma forma que o lucro da Petrobras. Um sistema com poucos impostos simples traria pouca burocracia a mais e muitas distorções a menos.
Este pode ser o maior erro de Paulo Guedes até o momento
Nos próximos dias, o governo deve anunciar sua posição – se apresenta outra proposta igual à de Cintra, se modifica a má ideia do imposto único ou apoia o projeto da Câmara. Se seguir os planos do seu secretário, Guedes corre o risco de cometer o pior erro de sua gestão.
Bernard Appy, economista respeitado que formulou a proposta da Câmara, já tentou aprovar uma reforma tributária durante o governo Lula. Depois de notar que a resistência maior vinha dos governadores e prefeitos, adaptou o texto para resolver esse problema político. Posteriormente, sua proposta foi debatida na academia por longos anos, melhorada no teste do tempo. É improvável que outra reforma avance tão rápido quanto esta, que acumula anos de discussão.
O projeto, adotado por Rodrigo Maia, tem bases liberais, alinhadas às linhas gerais defendidas por Paulo Guedes. A decisão de Guedes deve vir ainda nesta semana, segundo informa a imprensa. Seria bom se o governo adotasse o velho princípio conservador da prudência, respeitando aquilo que sobreviveu a anos de debates e deu certo noutros lugares do mundo. A outra opção, claramente anti-conservadora, é tentar desenhar um sistema inédito neste planeta a partir do escritório em Brasília. Escolher o imposto único de Marcos Cintra seria o pior erro da boa gestão de Guedes até o momento.
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