É fácil aprender economia para otários. Método: chegue perto do autor de um argumento, verifique a tribo política dele e classifique-o como amigo ou inimigo. Em caso de incerteza, observe as palavras utilizadas. Falou em redistribuição de renda? Deve ser socialista. Elogiou a economia de mercado? Tem jeito de liberal. Após a identificação, nada mais é necessário.
Há anos, a esquerda brasileira atua como a grande difusora desta nobre disciplina. Os debates são reduzidos a uma avaliação moral sobre “neoliberais”, “fascistas”, etc. Como bem lembrava Raymond Aron, o marxismo-leninismo se assemelha a uma religião secular: tem Deus, diabo, paraíso e juízo final. Mesmo esquerdistas que não atuam em partidos estritamente leninistas costumam manter esse maniqueísmo como base da sua visão de mundo.
Daí vem a consequência lógica: quando a política pode ser reduzida ao conflito entre uma classe oprimida e outra opressora, e cada classe sempre é representada pelos mesmos partidos, todo diálogo com o mal deve ser reprovado. Se uma proposta econômica vem daqueles partidos rotulados como burgueses, necessariamente é ruim. Até há um modo mais sofisticado de formular essa mesma posição – nele, ideias de partidos e economistas burgueses podem ser boas, mas precisam se despir dos seus componentes de classe –, mas sofisticação não é o forte da esquerda brasileira.
A direita, especialmente suas frações mais anticomunistas e menos liberais, também incentiva comportamentos parecidos. Para alguns, a posição sobre um tema econômico pode ser definida a partir do que socialistas defendem: sempre deve-se defender o oposto. Na história recente, não há exemplo melhor do que Donald Trump e seus apoiadores.
Ainda no fim do seu governo, Barack Obama viu que a negociação com o Congresso estava complicada e decidiu abraçar uma pauta historicamente bem quista pelos republicanos: acordos comerciais. Gradualmente, como resposta, a direita americana adotou um discurso diametralmente oposto.
Também é sintomático que Trump tenha aumentado impostos para produtores de energia limpa e diminuído impostos para quem está no extremo mais rico da distribuição de renda. São políticas que não fazem o menor sentido econômico, levaram boa parte dos economistas republicanos a abandonar o partido e, mesmo assim, foram ardentemente defendidas pela base trumpista.
Reconheço que, no debate econômico brasileiro, este problema é mais comum à esquerda. Não ignoro o fato de Bolsonaro formar posição sobre diversos assuntos com base no método aqui descrito, mas o problema da esquerda é mais profundo, além de endossado por boa parte dos intelectuais, jornalistas e negligenciado por agências de checagem. Nesse ambiente marcado pela negligência de quem rasga a missão profissional para cumprir o dever tribal, fica fácil vender intolerância e burrice fingindo que se trata apenas de materialismo histórico e dialético. Um exemplo motivou esse texto.
Nos últimos meses, escrevi diversas colunas aqui na Gazeta defendendo a autonomia do Banco Central. Em geral, eram pautas frias, aquelas que não dão muita audiência porque não abordam o assunto do momento. Fiz isso conscientemente, mesmo sabendo que prejudicaria meus números de audiência no jornal. Afinal, política pública só vira o assunto do momento na última hora, quando a maioria das pessoas corre para as redes sociais, repete o discurso oficial da sua tribo e usa uma pauta séria para arrotar virtudes.
Não sei se o projeto de autonomia do Banco Central será mesmo votado nesta quarta-feira. Mas tenho certeza que milhares de pessoas já correram na internet para repetir que se trata de uma entrega do BC para banqueiros. Se quiser entender melhor o que penso sobre essa bobajada, leia as colunas anteriores. Mas, em relação ao tema desta coluna, vale notar que esse papo de entrega para banqueiros não inclui qualquer argumento econômico em relação ao texto do PL a ser votado. Há apenas moralismo tribal: defender um Banco Central autônomo seria igual a apoiar a expropriação do povo por banqueiros.
O procedimento é similar ao que esta mesma esquerda adotou no debate do saneamento. Naquele caso, gritaram que se tratava de privatização, novamente sem citar um trecho do projeto. Se alguém explicasse que, ao invés de privatizar, o novo marco do saneamento apenas pôs fim a contratos de programa sem critério ou transparência, ninguém apoiaria a pauta da esquerda naquele caso. Agora, novamente, fala-se em entrega para banqueiros porque explicar o que de fato é a autonomia do BC – mandatos fixos e necessidade de maioria no Senado em caso de demissão precoce – acabaria com o argumento.
A expressão “otários” não aparece por acaso no título do texto. O otário, segundo o dicionário Michaelis, é alguém “ingênuo, tolo, que facilmente se deixa enganar”. Quem trata a economia como campo de guerra tribal, em geral, crê piamente que políticos socialistas defendem as classes oprimidas ou que anticomunistas lutam pela civilização ocidental.
Trump não aumentou impostos para produtores de energia limpa porque queria salvar o Ocidente contra a histeria ambientalista. Ele apenas agradou os gigantes da energia suja que apoiavam seu governo. Interesses similares estão por trás da diminuição de impostos para o extremo mais rico da população.
PSOL e PT, por sua vez, fizeram oposição ao PL do Saneamento em coordenação direta e explícita com corporações de servidores que temem a perda das suas mamatas. Oprimidos de verdade são os alagoanos que bebem água com cocô.
No caso da autonomia do BC, petistas e ciristas não querem proteger nossa moeda contra o baronato financeiro. O real desejo é manter aberta a possibilidade deles mesmos capturarem o Banco Central com finalidade privada. Vale lembrar que a maior captura privada do Banco Central nos últimos anos foi comandada pelo governo Dilma Rousseff, com apoio dos principais economistas próximos a Ciro Gomes. Na cara dura, submeteram o BC a interesses eleitoreiros e agora vem com esse papo.
Aprender economia para otários é fácil. Escolha uma tribo, repita o que os caciques dizem e transforme toda questão num combate contra malvados da tribo adversária. Assim, é possível debater economia por anos sem produzir um mísero argumento econômico.
Aprender economia de verdade, por outro lado, é dificílimo. Por mexer com interesses materiais a todo momento, quem estuda economia precisa também aprender a separar verdade de propaganda. Além disso, a ciência econômica atualmente passa por uma revolução empírica que questiona muitos tabus do passado. Em um piscar de olhos, a conclusão de ontem fica ultrapassada. E é preciso de uma boa dose de humildade e coragem para corrigir a si mesmo.
A economia de verdade frequentemente é chata e boa parte das suas respostas começam com a mesma palavra: “depende”. O aprendizado sobre uma área geralmente não se aplica a outras. Concordo que a economia nem sempre precisa ser chata – é o que tento fazer aqui –, mas certamente ler sobre os últimos avanços da literatura é menos divertido do que sentir-se virtuoso enquanto achincalha tribos adversárias.
Caso o leitor queira apenas entretenimento, e não se importa em prejudicar o próprio país, recomendo que siga sistematicamente o manual de más práticas que descrevo acima. Se surgirem dúvidas sobre como aplicar a economia para otários na análise de um tema específico, pesquise no Twitter e não faltarão exemplos.
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