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Estão desatualizados aqueles que enxergam o BBB como mera diversão rasa. Se esta crítica já foi merecida no passado, as últimas edições do programa mostram que o Big Brother Brasil se repaginou e hoje é uma das produções mais profundas da TV brasileira.
O nome do Big Brother faz referência a "1984", clássico de George Orwell sobre o totalitarismo. No reality show, participantes são confinados numa casa dotada de dinâmica social própria. Sem contato com o mundo exterior e cumprindo regras que incentivam conflitos a todo momento, redes de relações se desenvolvem. Mas é o público externo que vê tudo e decide o destino dos participantes. A influência dentro da casa, na convivência cotidiana, pode ser influenciada por manipulações que o público vê de fora, mas passam desapercebidas para quem está lá dentro.
Um programa com essas regras já é, em si, útil para observarmos o ser humano e as relações informais de poder que se formam em cada conversa simples. Recentemente, a Globo acertou ao incluir participantes interessados pelo debate de costumes e capazes de levar esse interesse para a TV. A importância desses temas na edição anterior fez com que os participantes já entrassem no BBB 21 falando em cancelamento, discriminação e afins.
Karol Conká, eliminada na noite de terça, é a principal vilã do programa. Apesar de influente e conflituosa, Conká não tem predileção pelo barraco. Prefere a conversa calma, tendo uma incrível capacidade de manipulação e grande disposição para usar causas identitárias em interesse próprio nos pequenos conflitos. Sempre que preciso, Karol intimida seus colegas lembrando que é uma mulher preta, sugerindo que a mínima desavença seria vista fora da casa como racismo.
Inicialmente, a tática funcionou – e funciona até mesmo fora da casa. Os acusados por Karol choravam, pediam desculpas ao Brasil e não escondiam o medo do cancelamento, apesar do caráter absurdo nas acusações.
Gilberto, um dos participantes prediletos do público, é negro, gay, cristão, economista e aparentemente meio liberal. Ao criticar o abuso das causas identitárias por parte da participante, ele costuma citar passagens da Bíblia e outros ensinamentos de sua formação cristã. O perdão aparece sempre em suas falas.
Antes do BBB 21, ninguém assinaria um roteiro desses nem para o mundo da ficção. As acusações seriam imediatas. Depois do programa, não sei. Venho reparando mudanças nítidas até mesmo no debate sobre economia, ciências sociais e políticas públicas. São meios que sempre tiveram suas Karóis Conkás. Vejo certos intelectuais, especialmente aqueles que gostam de intimidar e constranger terceiros para proteger argumentos frágeis, sendo publicamente questionados pela primeira vez em muito tempo. O medo diminuiu. Transmitidas em rede nacional, expostas por câmeras implacáveis, as práticas de Karol Conká e amigos foram extremamente didáticas.
Não se trata de desvalorizar as causas citadas. Pelo contrário, nada desvaloriza mais a luta antirracista quanto quem a trata como instrumento de intimidação em briguinhas.
A opinião pública sobre esse tipo de prática se mostrou unânime. A opinião publicada, especialmente sua parcela ligada à luta antirracista, reluta em aprender a lição. Muitos textos preferem criticar a Globo ou os reality shows, como se militantes não tivessem nada a ver com isso. Recusam-se a admitir que certas práticas de Karol Conká escancaram a necessidade de revisão profunda nos métodos e conceitos de alguns ativistas.
A militância errada de Karol Conká fez bem ao Brasil. Dizer-se a favor de uma causa, ou até mesmo ter uma história de vida legitimamente afetada por violências estruturais, não dá a ninguém o direito de evocar essas causas para fins estritamente pessoais. O exemplo dela enriquece o imaginário nacional, servindo como referência de uma prática cada vez mais comum. Talvez seja a hora de admitir que o BBB não é tão superficial quanto dizem seus detratores.