O liberalismo está em alta. Quase dez anos atrás, quando comecei a me envolver com o então nascente movimento liberal, o rótulo era maldito. Poucos tinham coragem de se descrever assim. De lá pra cá, o jogo virou.
Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, criou o “Instituto Conservador Liberal”. O PPS, uma das siglas que disputava a herança do velho “Partidão”, mudou o nome para Cidadania, e trocou o socialismo pelo liberalismo como matriz ideológica. O PSDB, que historicamente rejeitou o rótulo de liberal quando esteve no governo, agora tem lideranças que se descrevem como liberais. E o DEM, que tirou a palavra “liberal” do seu nome, também quer reivindicar a mesma tradição ideológica.
Em meio a tamanha confusão, surgem diagnósticos tão enfáticos quanto incorretos, como “Fulano não é liberal, pois não existe liberal conservador” ou “Beltrano é de esquerda, portanto não pode ser liberal”. Outros argumentam que, se há liberais na esquerda e na direita, é porque a palavra “liberalismo” perdeu seu significado. Ou que o Brasil estaria entrando no caminho dos Estados Unidos, onde “a esquerda roubou o termo liberal”.
Muitas pessoas que respeito e reputo como inteligentes repetem alguma das opiniões descritas neste parágrafo – que, como pretendo demonstrar a seguir, são incorretas. Inclusive o Mercado Popular, site que editei por alguns anos, já publicou um texto argumentando que não existe liberalismo conservador. Mas existe, sim. Assim como existe liberalismo de esquerda.
Tanto o liberalismo de esquerda quanto o liberalismo conservador existem há séculos, desde a concepção do liberalismo. E existem como prática política e ideologia. Não me refiro a um episódio histórico isolado, mas a um padrão observado em vários países e vários períodos históricos diferentes.
Exemplos não faltam. Comecemos pelo início. Nenhuma instituição foi mais importante para a formação do liberalismo do que o Partido Liberal britânico. Sua história começa em 1831, quando o Parlamento britânico aprovou uma reforma que expandia o direito de voto. A reforma abalou a sociedade local, com direito a motins na rua e intenso debate no espaço público. Foi assim que três grupos políticos favoráveis à reforma – Whigs, Radicals e Peelites – começaram a se aproximar. Esses três grupos primeiro se reuniram num clube de debates, o Reform Club, e depois fundaram o Liberal Party em 1859.
O grupo era muito diferente entre si. Os Radicals foram pioneiros do que hoje chamamos de esquerda. Inclusive já usavam o vermelho como cor antes dos socialistas. Eram progressistas, reformistas e utilitaristas. Já os Whigs eram a ala mais reformista do establishment político britânico, em geral constitucionalistas e aristocratas – Edmund Burke, pai do conservadorismo moderno, era um Whig, mas morreu antes, em 1797. Fechando a tríade, os Peelites eram uma facção do Partido Conservador que se destacava pelas posições anti-protecionismo e pró-mercado.
Havia, porém, uma frouxa unidade entre os fundadores do Partido Liberal britânico. Em especial, acreditavam que um debate livre, construtivo, racional e tolerante era o melhor veículo para o progresso humano. Não por acaso, o partido foi fundado por um clube de debates. A defesa da liberdade já estava presente no discurso, mas as concepções de liberdade eram diversas desde o primeiro momento. O mesmo vale para outras ideias defendidas pelos primeiros liberais, como a democracia – uns defendiam o sufrágio universal, outros lutaram para manter restrições ao voto.
Liberais de esquerda, como os Radicals, e direita, como os Peelites e muitos Whigs, existiram desde o primeiro momento. Essa diversidade interna se manteve durante boa parte da história do Liberal Party. O partido abrigou imperialistas e anti-imperialistas, abolicionistas e escravistas, ajudou na criação do Partido Trabalhista e da NHS, mas não via problema em se aliar a conservadores.
Ainda no Reino Unido, o debate entre Hayek e Beveridge já foi tema de coluna minha aqui na Gazeta. Trata-se de mais um dos muitos debates internos que caracterizam a história do liberalismo por lá.
Essa avaliação não se limita à Inglaterra. Já que acabei de escrever sobre a origem do Liberal Party, vale a pena lembrar a origem dos termos direita e esquerda em sua acepção política. Eram os lados nos quais se sentavam os parlamentares da Assembleia Nacional francesa. Frédéric Bastiat, famoso liberal francês que até hoje é sucesso de vendas no Brasil, sentava-se à esquerda.
No Brasil, também tivemos um Partido Liberal no século 19. Talvez o leitor saiba que liberais brasileiros lideraram o movimento abolicionista no Brasil. Mas uma observação mais atenta mostra que também haviam liberais escravistas, que inclusive – qualquer semelhança não é mera coincidência – denunciavam os liberais abolicionistas como socialistas envergonhados. O mesmo ocorria em debates como a reforma agrária, defendida por muitos liberais abolicionistas, e que de fato se tornou uma grande bandeira dos socialistas brasileiros no século 20.
Roberto Campos e Anísio Teixeira podem ser descritos da mesma forma: liberais brasileiros do século 20, fortemente influenciados pelo liberalismo americano do século 20. Anísio era filiado à tradição de John Dewey, um dos pais do liberalismo de esquerda nos Estados Unidos, pensador que via a escola pública como símbolo da liberdade. Já Roberto Campos aprendeu com liberismo dos grandes economistas de Chicago e com o anticomunismo de intelectuais do Partido Republicano. Anísio foi um homem de esquerda, ministro de Jango. Roberto Campos esteve na direita, ministro de Castello Branco. A descrição só é comum por conta da diversidade interna dos liberalismos brasileiro e americano.
Saindo dos exemplos políticos para o campo intelectual, o famoso guia de José Guilherme Merquior sobre o liberalismo, antigo e moderno, deixa explícita a existência de liberalismos conservadores e de esquerda. Merquior destaca a tradição do liberalismo de esquerda nos Estados Unidos, com pensadores de peso como Rawls, Dworkin, Dewey e muitos outros.
Não é que a esquerda tenha roubado o termo “liberal” nos Estados Unidos. Seria menos impreciso escrever que o liberalismo roubou a esquerda americana. Por décadas, Estados Unidos e Canadá se destacaram por serem raras democracias onde o liberalismo era majoritário. Na América Latina e Europa, influências marxistas e trabalhistas costumam predominar.
Reconheço que, nos Estados Unidos dos últimos anos, a ala socialista tem crescido dentro do Partido Democrata. Alguns desses socialistas fazem questão do rótulo correto e rejeitam o liberalismo explicitamente. Outros, porém, ainda são descritos como liberais. Também reconheço que a apropriação do liberalismo também se dá na direita brasileira. O exemplo do instituto de Eduardo Bolsonaro, que abre esse texto, é bastante didático. Até o discurso de posse de Paulo Guedes, em janeiro de 2019, sabe que o bolsonarismo não tem nada de liberal.
Decidi o tema desta coluna justamente por causa dessa onda de fiscalização do liberalismo alheio. Concordo que as intenções são nobres, mas é importante evitar que a crítica aos falsos liberais se transforme em distorção histórica. Muita gente escreveu corretamente que Eduardo Bolsonaro não é liberal, mas emendou com o erro de que não existe conservadorismo liberal, como sugere o nome de seu instituto. A história da política e do pensamento mostra que essa tradição ideológica evidentemente existe. Esquecer que existem vários liberalismos é esquecer o que diferencia o liberalismo.
Na abertura do texto, listei quatro opiniões que considero incorretas. Já argumentei contra três delas: argumentei que existe liberalismo conservador e esquerdista, além de ter defendido que o liberalismo da esquerda americana é muito mais que um nome roubado. Faltou uma última: a de que o liberalismo perde seu significado ao descrever esquerdistas, centristas e direitistas.
Concluo a coluna com esse último problema, particularmente importante. Os exemplos que dei acima, em diversos países e séculos, mostram que o liberalismo tem representantes na esquerda, direita e centro desde a sua concepção. A diversidade e o debate internos sempre caracterizaram o liberalismo e o diferenciam dos seus rivais mais famosos, como conservadorismo, socialismo e trabalhismo.
É até natural que os liberais, defensores do debate democrático e da persuasão racional como motores da sociedade, admitam dentro do próprio campo uma diversidade ideológica maior do que o comum. De tanto valorizar a liberdade de consciência e associação do indivíduo, o liberalismo transformou a diversidade de pensamento e o respeito à divergência em princípios basilares. Por isso, é normal que o liberal complemente o rótulo com “conservador” ou “progressista” ao descrever o que pensa.
O liberalismo não perde seu significado ao abrigar cabeças distintas. A verdade é precisamente o contrário: a tradição liberal se descaracteriza se for homogênea, se ficar restrita à direita ou à esquerda. A diversidade liberal não é fruto de uma confusão histórica contemporânea. Como dizem os jovens: não é bug, é feature. O desejo de monopolizar o liberalismo é, no fim das contas, o desejo de destruí-lo.
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