“Luiz Gama representa exatamente aquilo que queremos no Brasil do futuro: a superação da miséria pela educação, a militância dentro da lei e a coragem de chamar o absurdo pelo nome, especialmente quando o resto da sociedade normaliza o inaceitável.”| Foto: Arquivo Nacional do Brasil/Domínio Público
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Na Praça dos Três Poderes, em Brasília, entre o Palácio do Planalto, a sede do STF e o Congresso Nacional, há um memorial dedicado aos heróis oficiais da pátria brasileira. Os pouco mais de 40 homenageados estão no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Em anos diferentes, no mesmo dia 24 de agosto, morreram dois importantes nomes da lista: Luiz Gama e Getúlio Vargas.

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Eles merecem o posto? Vale a pena analisar os dois casos, mas antes disso é preciso observar a questão de modo geral. Um herói da nação pode ser escolhido porque serve como referência às gerações futuras ou em reconhecimento pelas grandes contribuições à comunidade nacionais. Os grandes heróis, dignos de homenagem de Praça dos Três Poderes, deveriam atender a esses dois requisitos, sendo simultaneamente bons exemplos e brasileiros cuja vida deixou um legado positivo ao país.

Getúlio Vargas é um dos brasileiros mais homenageado de todos os tempos, batizando incontáveis ruas, avenidas, praças e até a FGV, dentre outras honrarias. O tratamento dispensado é de grande herói nacional, como se Vargas fosse uma das grandes referências positivas na história brasileira. É justo associar distinção tão nobre a um ex-ditador? Acredito que não. A justificativa é ainda mais difícil se lembrarmos que algumas más práticas continuaram quando ele foi democraticamente eleito presidente nos anos 1950.

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Luiz Gama foi jornalista, poeta, advogado diretamente responsável pela libertação de centenas de escravizados e líder abolicionista. Ele nasceu livre, foi escravizado, aprendeu a ler e escrever mesmo sem ter acesso a escolas, reconquistou a própria liberdade, se tornou um dos brasileiros mais cultos de seu tempo e mudou o país usando apenas a palavra. A vida do “advogado dos escravos” foi dedicada a defender o mais básico dos direitos humanos. Getúlio Vargas, nunca é demais lembrar, foi responsável por inúmeras violações aos direitos humanos.

Parto do princípio de que nenhuma boa ação de Getúlio, mesmo como presidente democraticamente eleito, compensa a tirania que ele comandou entre 1937 a 1945. Desconfio do democrata que não dá muita atenção à ditadura do Estado Novo, argumentando que Vargas merece a boa memória porque fez grandes coisas antes e depois. Mesmo se tivesse feito, não deveria ser tratado como herói. O pior é que, mesmo nos outros períodos, o legado getulista passa longe de ser positivo.

Para poupar o leitor de argumentos já batidos sobre o patrimonialismo e a irresponsabilidade econômica do governo Vargas nos anos 1950, vale destacar o texto publicado no site do Insper sobre o desleixo de Vargas e JK na expansão do ensino fundamental. Em vez de priorizar a matrícula de tantas crianças quanto fosse possível, Vargas subordinou sua política educacional a outras prioridades do seu governo, como projeto de industrialização.

No Estado Novo, a porcentagem de crianças matriculadas no ensino fundamental caiu. Na segunda passagem de Vargas pela presidência, a porcentagem de crianças cursando o ensino fundamental até cresceu, mas rum ritmo bem inferior ao alcançado pelos outros presidentes do período 1945-1964. Que tipo de “pai dos pobres” é esse?

É óbvio que há diversas passagens muito positivas na vida de Getúlio Vargas. Os erros, porém, foram muito graves e não se limitam ao seu período como ditador. Se o Brasil pretende colocar a democracia e os direitos humanos entre os grandes valores nacionais, é importante dar a Vargas o seu devido lugar.

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Apesar de aparecerem juntos no Livro de Heróis da Pátria, Gama e Vargas ocupam espaços muito diferentes na memória nacional. Muitos mal lembram o nome do primeiro, mas quase todos sabem quem foi o segundo. Basta comparar a quantidade de homenagens públicas dedicadas a cada um. Gama tem pouco mais do que um bustinho no Largo do Arouche, construído após mobilização do movimento negro. O contraste grita.

Além da imensa contribuição que lhe valeu o epíteto de patrono do abolicionismo, Luiz Gama representa exatamente aquilo que queremos no Brasil do futuro: a superação da miséria pela educação, a militância dentro da lei e a coragem de chamar o absurdo pelo nome, especialmente quando o resto da sociedade normaliza o inaceitável.

Getúlio Vargas, por sua vez, não deveria servir como bom exemplo ou merecer celebração por seu legado. É especialmente vergonhosa a quantidade de homenagens dispensadas a quem tanto prejudicou o país.

Se rebatizarmos os espaços públicos que hoje homenageiam Vargas, será difícil encontrar novos nomes para tantas ruas, avenidas e afins. Seria mais fácil substituir tudo de vez, trocando o nome do ex-ditador pelo de Luiz Gama. A ideia poderia se estender à FGV, que teria um nome mais coerente com os valores da instituição caso se transforme em FLG. Assim, seria possível resolver duas injustiças de uma só vez: reverter o esquecimento de quem deveria ser mais lembrado e cortar a apologia ao que jamais pode ser tolerado por democratas.

Não é preciso incendiar estátuas para reescrever a história. As instituições, legitimadas pelo voto do brasileiro, podem e devem agir. Nada mais justo do que usar os meios da democracia para rediscutir símbolos nacionais e, inspirando-se em melhores exemplos, construir instituições que não reproduzam a velha paixão latino-americana por populistas que semeiam atraso. Colocar Luiz Gama no lugar de Getúlio Vargas seria um ótimo começo nesta longa jornada.

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