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Pedro Menezes

Pedro Menezes

Pobreza e desigualdade não caíram por causa da bondade de Lula

Ex-presidente Lula discursa para militância no Sindicato dos Metalúrgicos: redução da pobreza foi um evento global e coincidiu com o governo dele na década de 2000.
Ex-presidente Lula discursa para militância no Sindicato dos Metalúrgicos: redução da pobreza foi um evento global e coincidiu com o governo dele na década de 2000. (Foto: Nelson Almeida/AFP)

O lulismo, um dos movimentos políticos mais poderosos da história do Brasil, tem um mito fundador: a bondade de "Vossa Lulidade" fez com que 36 milhões de brasileiros saíssem da miséria. O número varia. Na boca dos petistas, todos os brasileiros que saíram da pobreza durante os anos 2010 devem se levantar em graças ao “Amigo” da Odebrecht.

Em notas oficiais e discursos, diz-se que “Lula tirou milhões da miséria”, numa frase que, adequadamente, tem Lula como sujeito e os miseráveis do Brasil como objeto. Após a soltura do ex-presidente, muitos dos que criticavam os “gados de político” até ontem agora dizem coisas como “foi Lula quem me deu o meu diploma”.

O mito do Lula bondoso que tirou milhões da miséria converteu-se, ao longo do tempo, em mito fundador do movimento político personalista que ronda o ex-presidente. Mesmo na esquerda, de modo mais amplo, a bondade do ex-presidente é sempre adotada como premissa para analisar o Brasil. O maior defeito de Lula, dizem seus defensores, foi amar demais os pobres deste país.

Como todos sabemos, o governo Lula marcou um período de substantivo crescimento no bem-estar do brasileiro, especialmente na base da distribuição de renda. O PIB per capita cresceu cerca de 2,9% ao ano em média entre 2003 e 2010. Já entre 1995 e 2002, no governo FHC, a taxa de crescimento média foi de 0,9%, menos de um terço da observada nos dois primeiros mandatos presidenciais do PT.

Muitos comparam os dois governos, mas param por aí. Observam o maior crescimento sob Lula, mas raramente contextualizam o desempenho de cada governo. Nos mandatos de FHC, a maior taxa de crescimento da América PIB per capita foi a do Chile (3,5% ao ano), seguida de Peru (1,7%), Bolívia (1,2%), Brasil (0,9%), Colômbia (0,05%), Uruguai (-0,4%), Equador (-0,4%), Paraguai (-1,2%), Venezuela (-1,7%) e Argentina (-1,9%). Fomos o 4º país entre os principais da região.

Já no governo Lula, apesar do crescimento maior, ficamos em 8º entre 10. A lista é puxada pela Argentina e Peru (5,3% ao ano), seguidos do Uruguai (5,2%), Chile (3,4%), Colômbia (3,2%), Paraguai (3,1%), Venezuela (3,1%), Brasil (2,9%), Bolívia (2,5%) e Equador (2,4%).

No governo FHC, a taxa de pobreza argentina (medida pelo % da população vivendo com menos de U$ 1,90 por dia) triplicou. Grande parte dos países sulamericanos observaram um aumento de pobreza na virada do século 21. No Brasil, houve diminuição no mesmo período. Já no governo Lula, a diminuição da pobreza se acelera, mas o cenário internacional havia mudado. A primeira década desse século vai ficar conhecida como um dos maiores períodos de redução da pobreza na história humana. Por todo o mundo, a pobreza caiu consideravelmente. O Brasil segue a regra.

A menos que Lula tenha sido o responsável por todo esse fenômeno global, esta é uma ressalva importante que deve ser feita aos excelentes números do seu governo. A causa do que aconteceu não está num presidente bondoso, mas numa conjuntura internacional onde todos tiveram números excelentes, especialmente no combate à pobreza.

Da mesma forma, Lula foi beneficiado por outro fenômeno. A partir dos anos 1980, o Estado brasileiro aumentou seus gastos com educação para incluir uma maior parcela da população nas escolas. Ainda nos anos 1990, universalizamos pela primeira vez o ensino fundamental. No início da década de 2000, a geração anteriormente educada chegou ao mercado de trabalho, o que impactou a desigualdade e pobreza.

Nas palavras do grande economista Ricardo Paes de Barros, um dos responsáveis pelo Bolsa Família, em entrevista à revista Piauí:

“Entre 1996 e 2009, a escolaridade média de quem procurava emprego passou de 5,4 anos de estudo para 7,3 – um aumento, em 13 anos, de 35% na qualificação dos trabalhadores. Investimentos decorrentes de exigências da Constituição de 88 e da ampliação de verbas para o ensino fundamental no governo Fernando Henrique fizeram com que a desigualdade educacional, que antes crescia, começasse afinal a cair, no início dos anos 2000.”

Foi esse fenômeno que permitiu que a elevação do salário mínimo no governo Lula obtivesse bons resultados. Segundo artigos de Firpo, Messina et al (2010), a valorização real do salário mínimo teve impacto positivo na desigualdade durante o governo FHC. Já no governo Lula, essa relação se inverteu: o salário mínimo crescente ajudou a combater a desigualdade, dado que a produtividade dos trabalhadores mais pobres crescia consideravelmente.

Sobre o Bolsa Família, Ricardo Paes de Barros, na mesma entrevista, considera que o  programa funcionou “mais como aditivo, contudo, do que como causa principal”. Ele poderia ter sido generoso com a política pública que ajudou a formular, mas o fato é que o Bolsa Família funciona como acessório num arsenal necessário para combater a pobreza. Sem crescimento, pouco adianta ter uma boa política social – os últimos anos, por sinal, são um exemplo disso.

No estudo “A Década Perdida: 2003-2013”, os economistas João Manoel Pinho de Mello (professor do Insper, Ph.D pela Stanford University), Vinicius Carrasco (professor da PUC Rio e Ph.D pela Stanford University) e Isabela Duarte (mestre pela PUC Rio) avaliaram o desempenho econômico brasileiro em contraste com o de países comparáveis, no mesmo período.

O método foi simples: para que a conclusão do estudo fosse mais precisa, em cada quesito foi feita uma comparação entre o Brasil e o que se chama de “grupo de controle sintético” – um grupo de países que pode ser tomado como o melhor possível para uma comparação justa. A conclusão é assustadora: o Brasil, entre 2003 e 2013, “cresceu, investiu e poupou menos; recebeu menos investimento estrangeiro direto e adicionou menos valor na indústria; teve mais inflação; perdeu competitividade e produtividade, avançou menos em Pesquisa e Desenvolvimento e piorou a qualidade regulatória; foi pior ou igual em quase todos os setores importantes; a distribuição de renda, a fração de pobres, e a subnutrição caíram em linha ou um pouco menos; a escolaridade avançou menos, a despeito de maiores gastos; a saúde andou em linha, sem grandes diferenças”.

O único critério em que avançamos mais do que os países de comparação foi no mercado de trabalho, mas mesmo nele os pesquisadores julgaram que apenas “avançamos na margem mais fácil: colocar as pessoas para trabalhar”. Em tarefas mais difíceis, como a já citada produtividade – que seria capaz de garantir empregos de melhor qualidade e com salários maiores –, o Brasil foi pior.

Mesmo sem Lula no governo, é provável que o Brasil vivesse um período de intensa redução na pobreza e desigualdade durante os anos 2000. Afinal, foi o que ocorreu por todo o mundo.

Portanto, Lula não deve ser julgado pelos resultados do seu governo. Cabe observar, principalmente, qual legado foi deixado ao Brasil. E o fato é que, apesar de ter tido mais de 80% de popularidade durante boa parte do mandato, Lula nunca entregou uma boa reforma tributária ou outras medidas estruturantes de longo prazo. Pelo contrário, suas tentativas de acelerar o crescimento brasileiro – como o PAC e a farra do BNDES – resultaram num estrondoso fracasso.

Os eleitores brasileiros já demonstraram, em quatro eleições, sua satisfação com os governos do PT. O mesmo pode ser observado na aprovação de Lula durante o seu mandato. Muitos enxergam (com boa dose de razão) como “retribuição” por todo esse fantástico processo de redução da miséria. O que precisamos lembrar é que eleitores não estão certos por definição. Na verdade, muitos economistas e cientistas políticos dizem que, em democracias, temos ótimos incentivos para não estudar a realidade antes de votar: ninguém jamais será capaz de distinguir perfeitamente quem merece levar o capital (ou o ônus) político por um episódio histórico. Estudar o que os pesquisadores mais sérios dizem sobre o assunto envolve um custo imenso sem benefício claro, já que dificilmente um eleitor sozinho definirá as eleições, não importa quão consciente seja o seu voto.

Uma pesquisa do King’s College de Londres e da Royal Statistical Society é esclarecedora nesse sentido: ela nos mostra que a população do Reino Unido erra muitos fatos básicos sobre o próprio país. O povo britânico erra clamorosamente o estado dos indicadores de imigração, criminalidade, programas sociais e gravidez na adolescência. Até mesmo num país onde o acesso à educação de qualidade e informação é muito superior ao do Brasil, a opinião pública é formada através de aparências e impressões gerais que podem estar simplesmente erradas. Por que seria diferente no Brasil? Será que nós somos melhores e mais inteligentes do que os britânicos? Apoio popular e razão nem sempre andam juntos.

A aprovação de Lula durante o seu período na presidência é compreensível, assim como suas vitórias eleitorais de 2002 e 2006. Lula provavelmente seria igualmente popular em qualquer outro país do mundo que passasse por tudo o que o Brasil passou nos últimos anos, mas a voz do povo não é a voz de Deus. Dar ao povo a razão em tudo o que diz não é nada inteligente, ainda mais num país como o Brasil, onde desde Floriano Peixoto nada é impossível quando o assunto é populismo. Conceder tons divinos ao voto popular é, também, conceder uma aura divina a nossa larga tradição de políticos autoritários.

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