Lá se vão uns 5 anos discutindo contas públicas. Ao que parece, a sociedade finalmente chegou a um consenso: é mesmo necessário combater os privilégios. Infelizmente, a boa conclusão é fruto de um debate torto, pouco baseado em dados e nas escolhas que realmente precisamos fazer.
Não é suficiente combater privilégios.
Apesar de justo e necessário, o combate a benefícios da minoria não arranha a profundeza do nosso dilema sobre contas públicas. É necessário reformar amplamente o Estado e não só combater o direito para poucos, que está na etimologia do privilégio, mas cortar direitos prometidos a muitos, à maioria da população.
Cortes de ministérios, fim dos supersalários e super-aposentadorias são importantes nas mais diversas dimensões. Politicamente, a população só aceitará cortes em seus direitos se sentir que marajás também perdem suas benesses. Sob o ponto de vista da justiça social, nem é preciso argumentar a obscenidade de certos direitos da elite servidora. Qualquer escala de prioridades com algum norte moral sabe que muitas “indenizações” e benefícios precisam acabar, sem choro dos privilegiados.
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Nada disso desmente um fato essencial ao debate: o problema das contas públicas federais está essencialmente nos direitos da maioria, não em privilégios. Basta abrir algumas planilhas públicas para chegar a essa conclusão.
Não se trata do que eu quero, mas do que os números gritam.
Comecemos pelo resultado do Tesouro Nacional. É uma peça importante do Estado brasileiro, que não tínhamos até 1997. Sim, nossos dados confiáveis sobre contas públicas tem a idade do Gabriel Jesus.
Lá, é possível ver que as despesas primárias federais consumiram 14% do PIB em 1997 e 19,5% em 2017. Crescer como porcentagem do PIB significa crescer como porcentagem dos bolsos responsáveis por financiar o Estado – o seu, por exemplo. É muito mais do que crescer em valores absolutos.
Neste crescimento significativo está a raiz do problema: o Estado brasileiro está crescendo descontroladamente. Como as reformas necessárias para parar o problema são adiadas há muitos anos, o jeito foi resolvê-lo com impostos.
Assim, FHC conseguiu alcançar superávits ao fim do seu governo. Lula reforçou esse processo, contando com bastante sorte de um ciclo que elevou temporariamente as receitas federais, permitindo o financiamento dos gastos crescentes. Já no fim do governo Lula, sua derrota na votação da CPMF é sintoma de uma sociedade que já não tolerava pagar a conta do adiamento de reformas.
Dilma inaugura o período em que os gastos crescentes foram financiados pela dívida pública. Aqui estamos até agora.
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Por que os gastos cresceram tanto nesse período? O resultado do Tesouro Nacional também responde essa pergunta. Três linhas do orçamento – benefícios previdenciários do RGPS/INSS, abono salarial e LOAS/RMV – explicam 86,7% do aumento. Em comum, o fato de beneficiarem a maioria da população. Gente que está muito longe de ser marajá. A previdência do setor público não entra nessa conta.
O problema vai continuar. Ao menos é o que diz a projeção do Congresso, anualmente atualizada na Lei de Diretrizes Orçamentárias, mas sempre com a mesma conclusão: a parte mais dramática do desequilíbrio está na previdência do Regime Geral, ligada ao setor privado.
Os gastos do RGPS serão crescentes nas próximas décadas, como proporção do PIB, mas as receitas devem se estabilizar. Portanto, o resto do orçamento será continuamente drenado para pagar essa conta. Já o déficit do setor público tende a aumentar bem menos, mantendo-se praticamente estável no longo prazo.
É duro admitir. Seria muito mais fácil se esse dilema pudesse ser resolvido cortando privilégios e cargos comissionados de ministérios. Nem combater a corrupção resolve: mesmo se os R$ 51 milhões de Geddel fossem encontrados em apartamentos de mil agentes públicos todo ano, não seria suficiente para pagar sequer um mês das despesas previdenciárias – que está ficando com o mês cada vez mais caro.
A relevância dos privilégios se dá em diversas dimensões acessórias, todas elas importantíssimas. O funcionalismo é mais relevante no orçamento de estados e municípios, que passam por crise semelhante cuja resolução tem mais a ver com cortes à elite servidora. Como o Congresso Nacional é responsável por legislar sobre a previdência dos estados (não vejo boa razão para isso, mas assim ocorre), os governadores devem circular muito em Brasília nos próximos anos.
Além disso, há a razão política já mencionada. É justo que os cortes priorizem o mais supérfluo. Pode não ser suficiente, mas é simplesmente justo.
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De todo modo, o país vai entrar em séria enrascada se começarmos a arranjar desculpa para cortar benefícios constitucionais da maioria.
Todo gasto público precisa ser financiado por um de três meios: dívida, imposto ou emissão monetária.
O Brasil já tem o maior Estado da América Latina em receitas e despesas, segundo o último Fiscal Monitor. Até há países com carga tributária superior à nossa, mas geralmente se tratam de nações idosas e ricas da Europa.
Em 2019, devemos nos tornar também a mais endividada das nações emergentes, também segundo o Fiscal Monitor. A dívida pública não pode aumentar continuamente, sem limites.
E já estamos claramente nos nossos limites.
A última fonte de financiamento seria a emissão de moeda, consequentemente gerando inflação. O leitor sabe bem como é a história do Brasil nesta seara.
Como diria Margaret Thatcher: não há alternativa. Se demorarmos muito para perceber que certos direitos constitucionais da maioria são insustentáveis, não tem messias que dê jeito nesse país.
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