O poder de mercado dos grandes bancos é relevante para explicar os juros altos na economia brasileira? A eleição de uma mulher como prefeita incentiva jovens moradoras daquele municípios a se registrarem para votar na eleição seguinte? O salário de políticos e burocratas brasileiros influencia a qualidade das políticas públicas? O eleitor brasileiro pune governantes flagrados em casos de corrupção? Políticos que controlam a imprensa local são menos punidos quando flagrados em casos de corrupção?
Estas são algumas das perguntas respondidas por pesquisadores brasileiros com base nos métodos desenvolvidos pelos vencedores do Nobel de Economia em 2021. As contribuições de Guido Imbens, Joshua Angrist e David Card extrapolam as próprias fronteiras da economia. Os estudos mais importantes do trio vencedor (especialmente de David Card) são sobre o mercado de trabalho, mas as ferramentas desenvolvidas por eles, que justificaram o prêmio segundo a Fundação Nobel, podem ser aplicadas a vários campos das ciências sociais.
Por muito tempo, economistas estudavam relações de causa e efeito criando modelos teóricos para estimar o comportamento geral de uma variável. Esse tipo de método é útil, mas tem algumas limitações claras que podem ser grosseiramente resumidas no famoso clichê: correlação não é causalidade.
Como resolver esse problema? Uma alternativa está nos experimentos controlados, desenhados justamente para investigar relações causais. Me refiro ao modelo aplicado em testes de remédios e vacinas: os participantes são divididos por sorteio entre dois grupos; um recebe tratamento e o outro recebe placebo, e a conclusão vem da comparação entre esses dois grupos.
Ao contrário do que muita gente imagina, esse tipo de experimento controlado é possível em economia. O Nobel de 2019 premiou Duflo, Banerjee e Kremer, economistas que desenvolveram pesquisas deste tipo para estudar políticas de desenvolvimento.
Apesar de possível, este tipo de experimento nem sempre é viável para estudar relações de causa e efeito em ciências sociais. David Card, Guido Imbens e Joshua Angrist ajudaram a desenvolver métodos que permitem simular experimentos a partir de dados não experimentais. Esses “experimentos naturais” são possíveis em condições bastante específicas – estudar quais condições são essas foi parte da contribuição acadêmica que justificou o prêmio de Imbens e Angrist.
Voltando ao primeiro parágrafo, todas as perguntas ali colocadas foram respondidas por artigos de economistas brasileiros que utilizam experimentos naturais – isto é, simulam experimentos com base em dados não experimentais. Em todos os casos, a criatividade dos pesquisadores fez a diferença e permitiu superar limitações metodológicas que impediriam o trabalho noutros tempos. Vale notar que nenhum dos artigos é voltado ao estudo do mercado de trabalho, mas todos utilizam as ferramentas que David Card e coautores aplicaram pioneiramente para estudar o assunto.
Gustavo Joaquim e coautores (2020), por exemplo, repararam que fusões e aquisições de grandes bancos afetam desigualmente os municípios. Em algumas cidades, a competição bancária era radicalmente reduzida pela fusão/aquisição, especialmente quando os principais competidores da região eram os mesmos bancos que se fundiram. O inverso ocorria nas regiões de fraca atuação dos bancos que se fundiram. Onde houve queda maior da competição bancária, verificou-se também uma diminuição relevante da oferta de crédito e um aumento da taxa de juros. Assim, os autores deram contribuição fundamental na literatura sobre a alta taxa de juros brasileira, indicando que a concentração bancária está entre as explicações do problema.
Outro artigo ao qual faço referência no primeiro parágrafo foi escrito por Sérgio Firpo, Renan Pieri e Paulo Arvate, pesquisadores do Insper e FGV. Eles comparam cidades onde uma mulher quase foi eleita como prefeita com cidades onde uma mulher foi eleita prefeita por margem apertada. Desta forma, é possível avaliar com maior precisão se a eleição de uma prefeita tem consequências relevantes para o engajamento político de mulheres jovens. A resposta é positiva: a eleição de uma prefeita incentivou o registro de mais eleitoras na faixa dos 16 a 17 anos, que poderiam optar entre votar ou não.
Apenas para que sirva como referência a interessados, as outras perguntas do primeiro parágrafo são respondidas em artigo do pesquisador Cláudio Ferraz (University of British Columbia e PUC-Rio) e coautores.
A imprensa brasileira noticiou o Nobel de Economia deste ano com um lamentável foco na polêmica sobre o salário mínimo. Como bem explicam Maria Oaquim e Vitor Possebom em excelente texto no site Terraço Econômico, o famoso artigo de David Card e Alan Krueger sobre salário mínimo não é importante apenas pelos resultados encontrados, mas sim pela abordagem utilizada.
Em vez de produzir um modelo geral para o desemprego em cada estado, e avaliar como o salário mínimo afeta essa variável, os autores preferiram analisar um episódio de brusco aumento do salário mínimo no estado americano de Nova Jersey e comparar o desempenho daquele estado com a vizinha Pensilvânia, improvisada como grupo de controle, cujo placebo foi o não aumento do salário mínimo. Esta abordagem abriu caminho para notáveis avanços científicos que foram muito além da literatura sobre salário mínimo ou mesmo mercado de trabalho.
Infelizmente, a imprensa brasileira destacou justamente o que há de mais passageiro no trabalho dos premiados. O legado de Card, Imbens e Angrist não está num resultado, mas numa nova forma de fazer ciência social, infelizmente pouco conhecida pelo grande público, que mesmo depois do Nobel de 2021 continuará mal informado sobre a boa nova.
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