Paulo Guedes frequentemente fala sobre o novo modelo de crescimento que ele quer implementar no Brasil. Os planos de reforma são, inclusive, sua justificativa para o crescimento baixo no curto prazo. Este seria um purgatório necessário enquanto a economia completa a transição para o novo modo de funcionamento. Mas o que, efetivamente, ele quer dizer com isso?
O exemplo preferido do governo para tratar o assunto é o do “PIB privado” e “PIB público” – o primeiro estaria crescendo mais que o segundo. Há certa “contabilidade social criativa” nesta descrição, como apontam Roberto Ellery e outros economistas. Os conceitos de PIB privado e público são controversos e não possuem significado econômico prático.
Nas linhas a seguir, trago um exemplo mais concreto do que é essa mudança de paradigma. Os dados do mercado de crédito nos últimos 13 anos – infelizmente, os números do Banco Central começam em 2007 – ilustram muito sobre a política econômica de todo esse período.
Crédito livre e direcionado
O Banco Central mantém dados sobre todas as operações de crédito realizadas em território nacional. Cada empréstimo e financiamento fica registrado no BC. Essas operações podem ser divididas em dois tipos: livres e direcionadas.
O crédito livre, na definição do BC, tem sua taxa de juros definida em negociação livre entre cliente e instituição financeira. Já o crédito direcionado tem taxas influenciadas por alguma política pública e geralmente é operado por bancos estatais, como o BNDES.
O gráfico abaixo mostra o saldo de todas as operações de crédito ativas no país, em trilhões de reais. Os valores estão atualizados pela inflação, a preços de janeiro de 2020.
Um ponto que chama a atenção no gráfico é que, depois de um crescimento contínuo entre 2007 e 2014, o saldo de crédito total caiu muito durante a crise econômica. E o pior: ainda estamos longe de recuperar o que perdemos. Há menos crédito circulando na economia, menos financiamento para investimentos capazes de elevar o bem-estar econômico dos brasileiros.
Em dezembro de 2014, o saldo de todas as operações de crédito ativas no Sistema Financeiro Nacional chegava a R$ 3,96 trilhões. O fundo do poço foi em julho de 2018, quando havia apenas R$ 3,30 trilhões. Queda total de R$ 660 bilhões. Recuperamos uma parte no último ano e meio. Em janeiro de 2020, dado mais recente, o saldo de crédito total estava em R$ 3,46 trilhões, meio trilhão abaixo do valor registrado em 2014.
O gráfico abaixo inclui os mesmos dados do anterior, mas em outra escala: porcentagem do PIB. Isso nos permite analisar mais facilmente a trajetória do saldo de crédito livre e direcionado.
De cara, é possível notar que o crédito livre cresceu apenas num período inicial e, desde a crise financeira dos EUA em 2008, se estagnou. Desde então, e até as eleições de 2014, o governo federal promoveu uma grande expansão do crédito direcionado. A esperança era que o setor privado entraria na onda, com crescimento também do crédito livre. Não foi o que aconteceu.
A partir de 2015, a expansão do crédito direcionado foi vista como irresponsável e gradualmente revertida. Após cair durante a crise, o crédito livre volta a crescer a partir de 2017. O crédito direcionado, por outro lado, continua em queda.
O crédito total só demorou até 2018 para voltar a crescer porque a expansão do crédito livre precisava compensar o encolhimento do crédito direcionado. Como o governo acredita que a trajetória de 2008 a 2015 foi um erro, ele não pode relaxar no corte de subsídios públicos. Essa decisão cria um custo num momento inicial, no qual o governo não pode estimular a economia através dos bancos estatais. A chave para que esse plano dê certo é o crescimento do crédito livre, que precisa de vigor suficiente para compensar a queda no crédito direcionado.
A mudança no modelo de crescimento
O gráfico abaixo segue trabalhando com o saldo da carteira de crédito – total, livre e direcionado. Agora, o foco está na taxa de crescimento do valor real em 12 meses.
Como o crédito total é uma composição entre livre e direcionado, matematicamente a linha verde deve ficar sempre no meio das outras duas. Entre 2009 e 2015, é nítido que a linha azul esteve acima das outras. Isto indica que foi um período no qual o crescimento do crédito total era guiado pelo componente direcionado.
O crédito livre crescia bastante em 2007. Vale lembrar que, no início do mandato de Lula, o governo promoveu um grande crescimento do crédito livre. Com liberais como Marcos Lisboa na equipe econômica, diversas reformas melhoraram o ambiente de negócios no setor.
A partir de 2008, ocorre uma desaceleração do crédito livre que culmina na crise econômica de 2015-16. Desde então, o crédito livre voltou a crescer. Atualmente, está com a maior taxa de crescimento desde 2011.
O sucesso do plano econômico de Paulo Guedes depende de uma aceleração ainda maior do crédito livre, incentivando a realização de investimentos no Brasil. O que foi alcançado até o momento ainda é pouco para que a economia volte a decolar.
Como já mencionei acima, o saldo de crédito total da economia brasileira caiu de R$ 3,96 trilhões em dezembro de 2014 para R$ 3,46 trilhões em janeiro de 2020. Para recuperar esse patamar, o crédito livre precisa crescer 25% (ir de R$ 2 trilhões para R$ 2,5 trilhões) caso o crédito direcionado permaneça estável.
Se o crédito direcionado cair R$ 200 bilhões no período, o crédito livre precisaria crescer 35% para recuperarmos o nível de crédito total registrado em dezembro de 2014. Hoje, a taxa de crescimento anual do crédito livre está ao redor de 10%. Isto joga dúvidas sobre a capacidade do governo Bolsonaro de entregar, ainda neste mandato presidencial, um saldo de crédito total superior ao que tínhamos antes da crise.
Ainda há desafios na mesa – e não são pequenos
O governo sabe disso. A política econômica tem dedicado grande atenção ao setor de crédito, tanto no Banco Central quanto no Ministério da Economia.
O BC tem alterado diversas regulações para aumentar a competição bancária. Um dos objetivos do ajuste fiscal é reduzir a taxa de juros paga pelo governo, permitindo que a poupança doméstica financie o setor privado. A própria redução do crédito direcionado ajuda na queda dos juros, estimulando assim o crédito livre.
O problema é que, compreensivelmente, não é fácil resolver os problemas do mercado de crédito brasileiro. Não adianta facilitar o uso de imóveis como garantias em empréstimos se, em caso de calote, a Justiça demora anos para permitir a execução das garantias.
Por sinal, o Brasil tem índices terríveis de recuperação de crédito. A inadimplência, em geral, leva a prejuízos para o credor. Mudar esse cenário exige reformas profundas no Judiciário. O governo consegue combater esse tipo de incerteza? Não é fácil.
O grande risco é que, sem resolver esses problemas, o crédito livre pode continuar severamente limitado.
Também há esperanças. Como sabemos, a expansão do crédito direcionado entre 2008 e 2015 financiou projetos tremendamente ineficientes, como estádios em regiões sem futebol de alto nível. Diversos estudos acadêmicos apontam que, apesar das centenas de bilhões de reais derramados no BNDES, as operações realizadas pelo banco estatal tiveram impacto ínfimo no emprego e no nível de investimentos realizados no país.
Com a emergência do crédito livre, a economia como um todo pode ficar mais eficiente. Em negociações livres no setor privado, o dinheiro pode fluir para quem é mais produtivo, ao invés de beneficiar amigos do poder.
A longo prazo, uma economia financiada majoritariamente pelo setor privado, com um mercado de crédito mais eficiente, pode ter um impacto revolucionário para o bem-estar brasileiro. O Brasil está na transição para um novo modelo de crescimento econômico. Gosto da ideia, mas sei que não será fácil chegar no que Guedes promete. Que o leitor não se engane: análises sobre crédito livre e direcionado podem soar abstratas para o não-economista, mas é este tipo de fenômeno que vai definir as eleições de 2022.
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