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Ninguém disse que Bolsonaro daria um golpe militar no primeiro dia de governo. Escrevo o mesmo desde agosto de 2018, na minha primeira coluna publicada nesta Gazeta do Povo. Título: “Bolsonaro não é Médici, mas tem cheirinho de Chávez”. Argumento: o então candidato prometia copiar o manual chavista de destruição da democracia.
Comentário mais comum: “Bolsonaro é de direita e Chávez é de esquerda, portanto os dois representam valores opostos”. Lembro que fiquei surpreso com isso — santa ingenuidade. A ideia continua aparecendo. Por exemplo, Rodrigo Constantino escreveu nesta Gazeta do Povo que a chapa Lula-Alckmin pretende colocar o Brasil no caminho da Venezuela, pois a esquerda voltaria ao poder. Por outro lado, Bolsonaro seria o único opositor sincero do chavismo, pois representa a direita.
Essa visão replica o erro dos petistas que defendem Chávez e Maduro por apego à divisão esquerda-direita. O verdadeiro problema é a guinada autoritária, a captura das instituições de controle e o ataque a todos que não se submetem ao projeto.
Nesta semana, o procurador-geral da República chegou a defender o “orçamento secreto” junto ao Supremo Tribunal Federal. Até Hamilton Mourão notou que a prática contraria princípios básicos da democracia. Quando o chefe do Ministério Público Federal é mais governista do que o vice-presidente da República, temos um forte sinal de chavismo. A própria existência do “orçamento secreto” é mais um exemplo.
Ainda mais graves são os fatos revelados pela reportagem “O Aparelho”, recém-publicada pela Revista Piauí. O jornalista Allan de Abreu relata em detalhes o aparelhamento da Polícia Federal. Diversos delegados têm sido transferidos ou punidos de alguma outra forma. Investigar amigos do governo não é uma prática bem vista.
Até mesmo ministros do STF — como Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes — e do STJ estariam envolvidos nos afastamentos de delegados incômodos. Muitos dos delegados que substituem os afastados estão envolvidos em suspeitas de corrupção e próximas de interesses políticos. Esse tipo de vulgarização das posições de liderança é muito familiar para quem conhece o caso venezuelano.
É importante lembrar que, como até Sergio Moro reconhece, o governo do PT não teve um aparelhamento minimamente próximo disto. A bem da verdade, a corrupção petista foi investigada por uma Polícia Federal independente. Dilma não mudou o diretor-geral da PF por conta de investigações.
O Ministério Público Federal foi duro contra o mensalão porque teve autonomia para trabalhar. O procurador-geral da República era escolhido pelos seus colegas. Augusto Aras, por sua vez, foi livremente escolhido por Bolsonaro. Se o mensalão petista era ilegal, o de Bolsonaro é institucionalizado e até defendido pela PGR.
Quem se preocupa com o risco de o Brasil virar a Venezuela não está percebendo que já estamos trilhando o caminho venezuelano. O aparelhamento das instituições avança rapidamente. Militares incompetentes se espalharam pelo Estado. Alguns dão entrevista à imprensa prometendo um golpe caso a oposição estique a corda e o Congresso discuta o impeachment.
Copiando o chavismo, o bolsonarismo insiste na constante divisão da sociedade entre bons e maus. O conflito permanente obriga as pessoas a escolherem um lado e automatiza as respostas: quando qualquer fato novo surge, o “combatente do lado do bem” corre para defender o seu líder. Assim, defende-se o indefensável. Para quem defende o bem, tudo vale a pena, até mesmo transformar o Brasil na Venezuela.