Luís Gama nasceu em Salvador no dia 21 de junho de 1830 – portanto, faria aniversário nesta semana se estivesse vivo. Aos 7 anos, ele foi escravizado para pagar uma dívida do seu pai. Na idade adulta, em São Paulo, conseguiu a própria liberdade, aprendeu a ler e escrever e frequentou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como aluno-ouvinte. Mesmo sem diploma, Luís Gama começou a advogar para outros escravizados, libertando cerca de 500 pessoas ao longo da vida, segundo suas próprias contas.
No século 19, os escravizados baianos eram vistos como insubmissos e, portanto, tinham menor valor de mercado. Ninguém honrou tanto esta boa fama quanto Luís Gama. Mais do que libertar escravizados, Gama chegava a defender, em jornais e tribunais, que todo escravizado tinha direito de matar o seu senhor em legítima defesa. Mais do que um herói nacional, o advogado dos escravizados foi a máxima personificação desta virtude dos negros baianos, conhecidos pelo orgulho e rebeldia frente a qualquer um que tente lhes obrigar a baixar a cabeça.
Além de símbolo da baianidade, Luís Gama foi também foi um grande representante da paulistanidade. Como muitos paulistanos, nasceu longe de São Paulo, mas foi lá que ele alcançou o seu potencial. Frequentou a mais tradicional escola de Direito do país e se tornou líder do movimento abolicionista junto a companheiros que também tentavam a vida numa cidade que, apesar de injustamente conhecida como capital da solidão, especializou-se em promover encontros. Integrante de uma geração que começou a ver São Paulo se tornando o que é hoje, Luís Gama foi enterrado após um cortejo que, segundo descrição daqueles que presenciaram, não teve precedentes na história paulistana.
A despeito de uma biografia deste porte, Luiz Gama não tem sequer um museu de grande porte exclusivamente dedicado à sua vida e obra. A casa onde ele nasceu, em Salvador, fica numa rua comum de um bairro pobre, que muito se beneficiaria do dinheiro de turistas e interessados na vida do ilustre baiano nascido ali. No máximo, Luís Gama batiza uma rua pouco conhecida do centro de São Paulo, com uma estátua aqui e outra ali, mas nada comparável à sua importância.
Até aí, não há novidade. Como o leitor já deve saber, cuidar da memória nacional não é o forte do Brasil. Mas é importante apontar que o problema vai muito além do mero esquecimento. O cartão postal mais conhecido de Salvador, o Elevador Lacerda, homenageia uma família que fez fortuna no tráfico de escravos. Na região onde Luís Gama nasceu, próxima à Baía de Todos os Santos, uma das ruas mais importantes leva o nome do Barão de Cotegipe, político do século 19 que fez de tudo para atrasar a Abolição.
Dizer que o Brasil não tem memória é pouco. Bom seria se apenas esquecêssemos dos heróis nacionais. Nosso problema é pior: homenageamos os heróis errados. É sintomático que o ex-ditador Getúlio Vargas tenha uma rua com seu nome em cada capital, enquanto os principais abolicionistas fiquem esquecidos até nas suas cidades natais.
O caso de Luís Gama, infelizmente, não é o único. André Rebouças, Joaquim Nabuco, José Bonifácio e muitos outros dos maiores brasileiros de todos os tempos também são desconhecidos pelo cidadão comum.
O problema persiste até mesmo quando observamos a memória da cultura popular. Não por acaso, muitas capitais tem dificuldade para renovar o próprio centro por conta do excesso de edifícios tombados, mas o próprio Estado fez questão de destruir o velho Maracanã, o desenho original do Estádio das Laranjeiras e os largos onde surgiram o samba no Rio de Janeiro. Tombamos aquilo que tem pouca importância e destruímos os maiores templos da memória nacional.
Além do aniversário de Luís Gama, outro motivo para trazer o assunto à tona é retomar uma discussão que, no ano passado, deu-se em termos tortos. O debate sobre a derrubada de estátuas não teve nada a ver com memória nacional ou coisa do tipo. O problema das estátuas derrubadas nunca esteve na rediscussão sobre quais cidadãos do passado são dignos de homenagem. O que realmente gera polêmica são as cenas em que alguns jovens, sozinhos e com base na própria vontade, querem decidir quais monumentos públicos merecem cair. A memória apareceu como pano de fundo num debate com outro foco.
Ao invés do voluntarismo, proponho que o Brasil rediscuta seu passado pela via adequada. Caso as instituições responsáveis decidam democraticamente que ditadores, traficantes de escravos e afins não merecem homenagens póstumas e outras honrarias, os impactos apareceriam já no presidente. É preciso constranger os políticos que homenageiam Vargas ou Médici, deixando claro que ditadores não representam os valores do Brasil que pretendemos construir a partir de agora. Também falta ao Brasil a capacidade de olhar para si, valorizando os brasileiros que contribuíram para a formação e desenvolvimento da nação. Quando valorizamos feitos de gerações anteriores, criamos referências de comportamento para gerações que virão. Heróis nacionais podem ser muito úteis, desde que mereçam esse título.
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